ARTIGO DE OPINIÃO | Movimento Feminista 4B da Coreia do Sul: Uma Explicação

ARTIGO DE OPINIÃO | Movimento Feminista 4B da Coreia do Sul: Uma Explicação

Tradução e Comentário Crítico: Suéllen Gentil
Alexsandro Pizziolo

Imagem: Movimento 4B. Security Distillery

O romance de Cho Nam-Joo publicado em 2016, “Kim Jiyoung, nascida em 1982”, é uma leitura devastadora. Relata as experiências diárias de machismo, desigualdade e misoginia implacáveis vividas por todas as mulheres na Coreia do Sul contemporânea. É também um livro que ajudou a impulsionar o Movimento 4B no país. Porque, tal como a heroína de Nam-Joo, as mulheres sul-coreanas estão fartas.

Desgastadas pela discriminação de gênero que habita todos os cantos da sua sociedade, as seguidoras do Movimento 4B não querem apenas lutar contra o patriarcado, mas afastar-se dele completamente. Além do romance de Nam-Joo, o 4B se inspirou na campanha “Escape The Corset” (“fuja do espartilho”, em tradução livre), que ganhou corpo no país em 2017, graças a pioneiras como Jeon Bora, que fotografou mulheres que rasparam a cabeça em um ato de rebelião, e Summer Lee, que se filmou sem maquiagem e usando roupas largas e “masculinizadas”. Ambas documentaram as tentativas das mulheres sul-coreanas de se livrarem da dominação masculina e ajudaram a atrair um número crescente de seguidores para o 4B.

O 4B é organizado em quatro princípios: Bihon (recusa ao casamento heterossexual), Bichulsan (recusa ao parto), Biyeonae (recusa ao namoro) e Bisekseu (recusa às relações sexuais heterossexuais). As proponentes do movimento, como as youtubers Lina Bae (uma influenciadora de beleza que compartilha as suas experiências com os padrões de beleza inatingíveis), Baek Ha-na e Jung Se-Young (Baek Ha-na trabalha com contabilidade durante o dia e à noite faz vídeos para o youtube junto à Jung Se-Young. O nome do canal em inglês é Solo-darity), publicam atualizações sobre os seus objetivos e progresso. “Depois de estudar feminismo e não casamento, comecei a viver minha vida mais focada em mim mesma”, diz HaNa, enquanto a decisão de Se-Young de não se casar foi influenciada por ver como sua mãe e sua avó foram tratadas como “subordinadas” em sua família. Os protestos acontecem on-line e em cidades de todo o país. Uma manifestação pelos direitos das mulheres em 2018, em Seul, durou 33 horas, enquanto uma mulher após outra subia ao palco para relatar as suas experiências de violência de gênero.

O Ocidente muitas vezes vê a Coreia do Sul através de lentes coloridas. É um país construído com base na dignidade, no respeito, nos grupos de K-pop sorridentes e na tecnologia inovadora. Um país que é certamente mais liberal do que o seu vizinho do Norte. No entanto, a Coreia do Sul tem um longo histórico de subjugação feminina.

Durante a Guerra da Coreia (1950-53), as mulheres eram obrigadas a caminhar por estradas que pensavam poder conter minas terrestres para verificar a segurança. Entre 1953 e 2021, o aborto era ilegal na maioria das circunstâncias. Um estudo do governo sul-coreano de 2015 revelou que quase 80% das mulheres foram assediadas sexualmente no trabalho. Os crimes digitais, incluindo a perseguição e o assédio sexual, como o molka – os atos de filmar secretamente por baixo das saias das mulheres em locais públicos ou em banheiros – são abundantes. De acordo com a legislação atual, os homens acusados de perseguição podem pedir às suas vítimas que retirem as acusações. No ano passado, um homem assassinou sua antiga colega de trabalho depois que ela se recusou a fazê-lo.

O Global Gender Gap Index (Índice Global de Disparidade de Gênero, em tradução livre) de 2022, do Fórum Econômico Mundial, classifica a Coreia do Sul em 99º lugar entre 146 países em termos de igualdade de gênero. Um artigo de janeiro de 2023 no jornal sul-coreano The Sisa Times relatou que 65% das mulheres no país não querem ter filhos. Cerca de 42% não querem casar, com mais de 80% delas citando a violência doméstica como principal razão.

O atual presidente (homem) do país, Yoon Suk-Yeol, prometeu encerrar o Ministério da Igualdade de Gênero e Família da Coreia do Sul, que apoia mulheres e vítimas de agressão sexual, alegando que trata os homens como “potenciais criminosos sexuais”. Em novembro passado, os meios de comunicação locais informaram que o governo de Suk-Yeol retirou os termos “igualdade de gênero” e “minorias sexuais” dos manuais escolares.

Em seu novo livro, “Flowers Of Fire”, a jornalista sul-coreana Hawon Jung analisa o recente desenvolvimento dos movimentos feministas. Quando perguntada a respeito do que ela acha que o 4B pode alcançar, Jung aponta para uma citação no seu livro de Lee Na-Young, professora de sociologia na Universidade Chung-Ang de Seul. “As normas patriarcais na Coreia do Sul, dada a sua situação econômica e o nível educacional das suas mulheres, são tão implacáveis que a resistência contra elas tende a ser igualmente intensa”, diz Na-Young. “Movimentos como o 4B são uma mensagem de alerta de que as mulheres boicotariam os relacionamentos românticos, a menos que a sociedade e os homens mudem.”

O movimento 4B desafia não apenas a estrutura patriarcal, mas também questiona a ideia convencional do que é esperado das mulheres em termos de casamento, maternidade, relacionamentos e até mesmo expressão pessoal. Sua abordagem radical em rejeitar relacionamentos românticos e sexuais heterossexuais como uma forma de protesto contra a dominação masculina é uma faceta que reflete a intensidade da busca por mudanças estruturais na sociedade sul-coreana.

Em certa medida, o movimento é também um reflexo da insatisfação com os movimentos feministas atuantes no território coreano nas décadas de 1990 e 2000, que dispensaram tempo e recursos em investidas legislativas que surtiram pouco efeito na vivência cotidiana das mulheres sul-coreanas. Os avanços propagados pelos governos de Kim Dae Jung e Roh Moo Hyun, responsáveis por uma institucionalização do feminismo nas instâncias governamentais sul-coreanas, mostraram-se extremamente limitados às conjunturas econômicas e sociais. Na mesma época, a ideia de “família normal”, baseada numa concepção patriarcal e heteronormativa de família, foi amplamente divulgada no país e “sequestrou” os debates públicos a respeito do lugar da mulher na sociedade sul-coreana.

Dessa forma, o movimento destaca a importância da autossuficiência e da autonomia das mulheres, incentivando-as a se concentrarem em suas próprias vidas, objetivos e desenvolvimento pessoal em vez de se submeterem a normas de gênero estabelecidas. Isso não apenas desafia as expectativas sociais, mas também visa redefinir a liberdade feminina de uma maneira que desvincula sua identidade e valor do contexto tradicionalmente definido pelo casamento e pela maternidade.

Essa abordagem radical e desafiadora tem gerado debates intensos na sociedade sul-coreana e recebeu tanto apoio entusiástico quanto críticas fervorosas. É um movimento que continua a evoluir, provocando discussões significativas sobre identidade de gênero, direitos das mulheres e o futuro da sociedade sul-coreana.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COATES, S. South Korea’s Feminist 4B Movement: An Explainer. 2023. Service95. Disponível em: https://www.service95.com/4b-movement-explainer/

KIM, S; KIM, K. Gender mainstreaming and the institutionalization of the women’s movement in South Korea. Women’s Studies International Forum, v. 34, n. 5, p. 390-400, set. 2011. DOI: 10.1016/j.wsif.2011.05.004.

LEE, J; JEONG, E. The 4B movement: envisioning a feminist future with/in a non-reproductive future in Korea. Journal of Gender Studies, v. 30, n. 5, p. 633-644, 2021. DOI: 10.1080/09589236.2021.1929097.

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