ARTIGO DE OPINIÃO |Os Desafios Para Igualdade: O Papel do Poder Judiciário no Reconhecimento do Casamento Homossexual no Japão

ARTIGO DE OPINIÃO |Os Desafios Para Igualdade: O Papel do Poder Judiciário no Reconhecimento do Casamento Homossexual no Japão

Redação e opinião crítica por: Denilson Menezes Carvalho
Revisão especializada por: Paula Michima, Angélica Alencar, Maurício Luiz
Borges Ramos Dias

Fonte: https://www.courts.go.jp/english/index.html

O art. 24 (1) da Constituição Japonesa1 afirma que o casamento deve ser baseado no consentimento mútuo entre ambos os sexos. Com base nisso, a administração pública japonesa vem vedando o casamento homoafetivo, por entender que seria incompatível com a Constituição por não cumprir com o requisito de sexos opostos (Ishida, 2019).


Seguindo essa lógica, em 30 de janeiro de 2020, o então primeiro-ministro japonês Shinzo Abe (2012-2020) declarou na Câmara dos Conselheiros que o artigo 24 da Constituição estipula que o casamento será baseado apenas no consentimento de ambos os sexos e, de acordo com a atual Constituição, não está previsto que casais do mesmo sexo poderão se casar (Endo; Ishimaru, 2023). Para tanto, deve-se proceder com uma emenda da constituição.

Neste contexto, entendendo que essa interpretação seria inconstitucional por violar os artigos 132 e 143 da Constituição, treze casais homoafetivos protocolaram ações judiciais requerendo uma indenização do Estado japonês pelos danos sofridos em decorrência da proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo por omissão legislativa da Dieta em quatro dos maiores tribunais regionais do Japão – Tribunal Regional de Tóquio, Osaka, Nagoya e Sapporo (Ishida, 2019, p. 116-117).


Esse modelo de ação, buscando indenização por danos causados pela omissão do Estado em legislar sobre um determinado assunto, ficou mais conhecido no Japão devido ao precedente da Suprema Corte no julgamento de direitos de voto dos japoneses vivendo no exterior, onde o tribunal julgou procedente o pedido dos autores para condenar o Estado ao pagamento de danos materiais por inércia da Dieta em legislar em matéria eleitoral, possibilitando o direito de voto de japoneses residentes no exterior (Japão, 2005; Carvalho, 2023a). Seguindo essa lógica, os treze casais fundamentaram seus pedidos de indenização na omissão contínua da Dieta em corrigir as disposições legais que impedem o casamento homoafetivo.


O Tribunal Regional de Sapporo indeferiu o pedido dos autores de receberem uma indenização pelos danos causados pela inércia da Dieta, mas reconheceu que a argumentação dos requerentes era correta, pois a interpretação do art. 24 (1) da Constituição, que veda o casamento homoafetivo e respalda o código civil japonês, é inconstitucional por violar os artigos 13 e 14 da Constituição (Ishida, 2019, p. 122).


A despeito de ter reconhecido a inconstitucionalidade, o Tribunal Regional de Sapporo entendeu que a lei não resulta automaticamente na responsabilidade civil do Estado, pois nesses casos a jurisprudência japonesa construiu dois requisitos para preservar o princípio da separação dos poderes: a) um inconstitucionalidade da lei deve ser evidente; e b) a Dieta deve ficar inerte por um longo período (Akiba, 2023).


Primeiro, a Corte confirmou que o ordenamento civil Meiji, regulamentado em 1896 após o período Edo (1603-1868), foi elaborado referindo-se à lei civil estrangeira de oito países, tais como França, Itália e Bélgica, e, naquela época, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não era uma instituição estabelecida nesses Estados. Assim, o Tribunal reconheceu que o casamento entre pessoas do mesmo sexo não era permitido pela lei civil Meiji ou pela lei civil emendada me 1947, porque se pensava que a homossexualidade era causada por doença mental no Japão e em outros países (Akiba, 2023).


Em segundo lugar, a Corte mencionou a situação do casamento entre pessoas do mesmo sexo em diferentes países. Por exemplo, o Tribunal explicou que, em 1989, a Dinamarca introduziu as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, a Alemanha e a Finlândia a seguiram em 2001, e Luxemburgo e a Irlanda em 2004 e assim por diante. Além disso, a Corte assinalou que a conscientização pública sobre a discriminação com base na orientação sexual está crescendo e continuará a crescer (Endo; Ishimaru, 2023).


A Corte reconheceu as atuais diferenças nos efeitos jurídicos baseados nos status pessoais, como herança, entre o casamento de pessoas heterossexuais e o de pessoas homossexuais. A Corte considerou que tais diferenças não eram mais racionais. Finalmente, o Tribunal decidiu que o direito de família relevante não é compatível com os artigos 13 e 14 da Constituição (Endo; Ishimaru, 2023).


Assim, em sua decisão, o Tribunal Regional de Sapporo julgou que a proibição do casamento homoafetivo é inconstitucional por violação dos artigos 13 e 14 da Constituição. Entretanto, no entendimento do tribunal, a Dieta não possuiria culpa pela inércia, uma vez que a inconstitucionalidade da vedação só se tornou evidente recentemente, devido aos movimentos sociais que, desde 2015, estão buscando, com maior afinco, a legalização do casamento homoafetivo, não sendo assim uma questão explícita para o Poder Legislativo,que ainda não teve tempo hábil para tratar do assunto (Hokkaido,2021).


Portanto, apesar de negar provimento ao pedido de indenização, a decisão de Sapporo é uma clara vitória para a causa do casamento homoafetivo:não só o tribunal declarou ser inconstitucional aproibição, como também deu umultimato à Dieta.

Em 20 de junho de 2022, o Tribunal Distrital de Osaka emitiu sua decisão. Ao contrário da decisão do Tribunal Distrital de Sapporo, a decisão de Osaka considerou que a vedação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo não violava nenhuma das disposições da Constituição. O tribunal considerou que o Artigo 24 (1), da constituição se referia ao casamento entre um homem e uma mulher, pois essa era a conjectura desde a era Meiji, não havendo razão para acreditar que tivesse ocorrido mudanças no entendimento do legislador durante a redação da atual Constituição e Código Civil (Osaka, 2022).


No que se refere ao artigo 13, o tribunal considerou que o casamento não era um direito inerente do indivíduo, mas uma instituição estabelecida apenas pela legislação. Sendo assim, a “liberdade para casar” não poderia ser derivada diretamente do artigo 24 (1) cumulado com o artigo 13, mas sim da legislação infraconstitucional. Isso contrasta fortemente com a decisão do Tribunal Distrital de Sapporo que, mesmo indeferindo o pedido, entendeu pela inconstitucionalidade da proibição (Osaka, 2022).


O quadro analítico da decisão do Tribunal Distrital de Osaka se assemelha muito ao entendimento da Dieta que argumentou que não há violação do artigo 14 se as distinções entre casais heterossexuais e casais do mesmo sexo são permitidas pelo artigo 24, argumentando que os dois artigos deveriam ser interpretados consistentemente entre si. O tribunal, no início, definiu o objetivo do sistema de casamento como aquele em que a proteção legal foi fornecida ao relacionamento sob o qual um homem e uma mulher produziram sua prole por meio da reprodução, estabelecendo assim sua próxima geração (Akiba, 2023).


O tribunal reconheceu que os casais do mesmo sexo estavam atualmente excluídos do casamento e que, apesar dos meios alternativos disponíveis para aliviar algumas das desvantagens, tais alternativas eram insuficientes em comparação com os efeitos legais resultantes do casamento que os casais heterossexuais poderiam obter. A despeito disso, a corte argumentou que havia várias opções que precisavam ser consideradas antes que casais do mesmo sexo pudessem receber os benefícios do reconhecimento legal. Além de estender o sistema existente de casamento a casais homoafetivos, também seria possível alcançar os mesmos resultados estabelecendo um sistema de reconhecimento legal que se assemelha ao casamento (Osaka, 2022).


Finalmente, o tribunal considerou que essa questão concerne à Dieta, por ser o poder responsável pelo processo legislativo democrático, determinar a possibilidade de casamento a casais do mesmo sexo. Com base nesses argumentos, o tribunal considerou que a discussão ainda não estava madura no Japão, portanto, não poderia condenar a Dieta por negligência legislativa, em vista da necessidade de debates e avaliação de interesses (Osaka, 2022).


Desta forma, o Tribunal Distrital de Osaka rejeitou sumariamente a reivindicação das partes, entendendo ao final que o artigo 24 (1) não garante aos casais do mesmo sexo, o direito ao casamento e as disposições legais vigentes eram compatíveis com a ordem constitucional, não havendo inconstitucionalidade (Akiba, 2023).


Embora as decisões de Sapporo e Osaka sejam opostas, ambas possuem seus méritos em relação às questões constitucionais debatidas. Enquanto o Tribunal Distrital de Sapporo constatou que a vedação seria inconstitucional por resultar em uma discriminação. Já micrômetro decisão do Tribunal Distrital de Osaka, embora adote um posicionamento mais conservador, suscitando que o entendimento do governo japonês e do código civil é constitucional e que possivelmente a melhor solução para a questão seja a elaboração de meios alternativos para estender os benefícios legais oferecidos pelo casamento aos casais homoafetivos (EffInowicz, 2022).

Portanto, uma diferença está no senso de urgência de resolução: o Tribunal Distrital de Sapporo estava disposto a discutir a condição atual sob a qual nenhum dos benefícios legais do casamento é estendido a casais do mesmo sexo e a considerar essa condição uma violação contínua da igualdade perante a lei e, em vista disso, inconstitucional. Já o Tribunal Distrital de Osaka decidiu por não tocar na condição atual, apenas dizendo que a negação do casamento em si não era uma violação à Constituição, optando por esperar que a Dieta, responsável pelo processo democrático, considerasse quais meios são possíveis para se estender a proteção legal, bem como apropriados à realidade Japonesa. Contudo, não mencionou se o legislador está obrigado a fazê-lo, nem estabelece qualquer limite de tempo para isso (EffInowicz, 2022).


Por fim, o Tribunal de Tóquio se manifestou sobre o tema em duas oportunidades. Na primeira, em 4 de março de 2020, o Tribunal Superior de Tóquio decidiu que os casais do mesmo sexo que possuam uma relação “de fato” devem ter direito aos mesmos benefícios legais que os concedidos aos casais heterossexuais. Esta decisão conferiu legitimidade à relação entre pessoas do mesmo sexo da requerente, permitindo que esta processasse a sua parceira há sete anos por infidelidade, uma medida que anteriormente estava restrita a parceiros heterossexuais (Asia Unbound, 2021). Na segunda, em novembro de 2022, o Tribunal Distrital de Tóquio emitiu uma decisão semelhante à fazer Tribunal de Sapporo, entendendo que a vedação é inconstitucional e deveria haver medidas legais para garantir alguma forma de proteção legal aos casais do mesmo sexo, mas julgou improcedente o pedido indenizatório (Asia Unbound,2021).


No tocante às perspectivas de julgamento pela Suprema Corte, foram raros os casos em que o tribunal decretou uma lei inconstitucional, apesar de ter o poder de revisão judicial. No entanto, nas últimas décadas, a Suprema Corte interpretou o Artigo 14 da Constituição Japonesa, que garante a igualdade perante a lei, para decidir que certas disposições legais violam a Constituição. Em cada um desses casos, a Corte tratou de questões de importância política e social e pareceu expressar confiança renovada em seu poder de decidir contra distinções arbitrárias nas circunstâncias contemporâneas (Matsui, 2010; Carvalho, 2023a).


Por exemplo, em 2008, houve um caso relacionado à nacionalidade de crianças nascidas for a do casamento entre homens japoneses e mulheres estrangeiras . Uma supremacia Corte considerou inconstitucional o artigo 3, parágrafo 1, da lei da nacionalidade devido à discriminação, revogando uma disposição que existia desde a era Meiji. Isso levantou a questão de que se tratava de uma norma desatualizada e irrazoável (Carvalho 2023b).


Nesse cenário, é crucial reconhecer como o papel da Suprema Corte, delineado pelas suas recentes decisões progressistas, desempenha uma função fundamental na condução da evolução do entendimento sobre igualdade e direitos civis no Japão. Ao posicionar-se assertivamente em casos emblemáticos, como o supracitado, a Suprema Corte não apenas interpretou a legislação existente em conjunto com a constituição, como também atuou como agente catalisador de mudanças sociais.


Através das suas decisões, a Corte não apenas influencia o cenário legal, mas também sinaliza a direção que a sociedade deve seguir para garantir a equidade a todos os cidadãos. Esse papel é especialmente relevante em questões sociais dinâmicas, onde as decisões judiciais desempenham um posicionamento crucial na adaptação do sistema legal às transformações sociais. Assim, ao invés de meramente desempenhar um “papel futuro”, a Suprema Corte, por meio de seu protagonismo ativo, passa a adotar um posicionamento contra majoritário, tornando-se um poder ativo na defesa da igualdade e na promoção da justiça em toda a sociedade.


Apesar disso, devido ao seu passado, a incerteza persiste quanto a futura decisão da Suprema Corte e à possibilidade de ampliação do seu entendimento sobre igualdade para incluir casais do mesmo sexo.


A conclusão dessa saga judicial nos próximos anos moldará significativamente o panorama dos direitos civis no Japão, revelando a capacidade do sistema legal de se adaptar às mudanças sociais e de proporcionar equidade a todos os cidadãos.


NOTAS DE RODAPÉ

1 Artigo 24. O casamento deverá ter como base apenas a união consensual de ambos os sexos e deverá ser mantido em comum acordo e com direitos iguais entre o homem e a mulher. Com relação à escolha do cônjuge, direito de bens, herança, escolha domiciliar, divórcio e outros assuntos concernentes ao casamento e à família, as leis deverão ser promulgadas do ponto de vista da dignidade individual e a equidade essencial dos gêneros (Japão, 1947).

 

2 Artigo 13. Todas as pessoas deverão ser respeitadas como indivíduos. O direito à vida, liberdade, a busca pela felicidade, contanto que não interfira ao bem-estar público comum, serão de suprema consideração na legislação e em outras instâncias governamentais (Japão, 1947).


3 Artigo 14. Todas as pessoas são iguais perante a lei e não deverá acontecer discriminação nas relações políticas, econômicas e sociais por causa de raça, credo, gênero, posição social ou origem familiar (Japão, 1947).


Referências:


AKIBA, Takeshi. Litígio sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo no Japão. Boletim Waseda de Direito Comparado, v. 41, p. 41-53, 2023.


ASIA UNBOUND (Japão). Justiça japonesa coloca casamento entre pessoas do mesmo sexo na agenda do país. 2021. Disponível em:https://www.cfr.org/blog/japanesecourt-puts-same-sex-marriage-nations agenda. Acesso em: 15 jul. 2023.

CARVALHO, Denilson Menezes. A Suprema Corte Japonesa: entre a jurisdição constitucional e o passivismo judicial. Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, 2023a.

CARVALHO. Denilson Menezes. Uma Análise do Papel do Poder Judiciário na Concretização dos Direitos Humanos no Japão: Progressos e Desafios. Coordenadoria de Estudos da Ásia. Recife, p.1-6, 2023b.

EFFINOWICZ, Rute. Aspekte der Gleichberechtigung in Japan–Zwei aktuelle Urteile zur gleichgeschlechtlichen Ehe (Dimensões da Igualdade no Japão – Duas Decisões Recentes sobre o Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo). Revista de DireitoJaponês (ZJapanR), v. 27, n. 54, p. 29-42, 2022.


ENDO, Márcia; ISHIMARU, Keiichiro. Percepções sobre tornar-se pai e formar família: uma exploração qualitativa das experiências sociais de mulheres japonesas com parceiros do mesmo sexo. Família LGBTQ+: Uma Revista Interdisciplinar, p. 1-16, 2023.


HOKKAIDO – JAPÃO. Tribunal Regional de Sapporo. Sentença nº 267. Hokkaido, 17 de março de 2021. Diário da Justiça. Hokkaido.


ISHIDA, Hitoshi. はじめて学ぶLGBT、 Natsume, 2019.


JAPÃO. Constituição (1947), (Kenpō). Tóquio, capítulo III, art. 14. Disponível em: https://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/constituicao.html. Acesso em: 25 Novembro. 2022

JAPÃO . Lei nº 147, de 04 de maio de 1950. Lei da Nacionalidade. Tóquio, 04 maio 1950. Disponível em: https://www.japaneselawtranslation.go.jp/en/laws/view/4366. Acesso em: 23 out. 2023.


JAPÃO. Suprema Corte do Japão (Saikōsaibansho). 59 Saibansho Minjihanreiswhū nº 2087 [MINSHŪ]. Tóquio, 14 set. 2005


MATSUI, Shigenori. Por que a Suprema Corte japonesa é tão conservadora? UL Rev., v. 88, p. 1375, 2010.


OSAKA – JAPÃO. Tribunal Distrital de Osaka. Sentença nº 1258. Osaka, 20 de junho de 2022. Diário da Justiça. Osaka. Disponível em: http:// llanjapan.org/ llan17/ cont/ uploads/ 2022/08/ OsakaDecision-Translation-final29120911.1-revised .pdf. Acesso em 04 de jan. de 2023

 

 

 

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