ARTIGO DE OPINIÃO | Caminhos do feminismo sul-coreano: um breve panorama sócio-histórico

ARTIGO DE OPINIÃO | Caminhos do feminismo sul-coreano: um breve panorama sócio-histórico

Beatriz Lee Bernardi

eubialee@gmail.com

Imagem: YUN, Suknam. Red Room, In: Women of Resistance, Becoming Historic, Hakgojae Gallery. Seul, 2021.1

A história do feminismo sul-coreano é complexa e marcada por fatores e questões diversas, cujas lutas têm sido caracterizadas por imensos desafios, conquistas lentas, mas significativas, e um longo percurso pela frente. Para entender este movimento, é necessário revisitar a história das mulheres na Coreia, o que faremos neste artigo de forma breve, percorrendo sucintamente diferentes momentos históricos que se interligam com o desenvolvimento do feminismo sul-coreano.

1. A mulher coreana através das eras

1.1 Pré-confucionismo

O tratamento dado às mulheres coreanas teve variações ao longo dos períodos históricos do país. Antes da adoção do Confucionismo, durante os Três Reinos (57 a.C – 668 d.C) e até certo ponto da dinastia Goryeo (ou Koryŏ, 918-1392), as mulheres em geral teriam relativamente mais liberdade do que em períodos posteriores: liderando tribos e batalhas, possuindo, herdando e gerindo bens e propriedades, e ocupando posições importantes na política e religião (LEE, 2008).

1.2 Joseon e o Confucionismo

Porém, com a passagem para a dinastia Joseon (ou Chosŏn, 1392-1910) houve a implementação oficial do Confucionismo na Coreia, afunilando drasticamente possibilidades como as citadas acima. Originária da China, trata-se de uma ideologia que pregava uma ordem social baseada na hierarquia e na obediência, sendo nela as mulheres consideradas subordinadas aos homens em todas as esferas da vida, incluindo família, sociedade e Estado (KIM; PETTID, 2011).

Segundo Han (2004, p. 151), a yangban (ou sadaebu, classe fundadora e dominante da dinastia Joseon), identificou o “declínio da moral” como uma das principais razões para a queda da dinastia anterior, Goryeo. Desse modo, visando estabelecer a sociedade neoconfucionista e patriarcal que desejava, a aristocracia fortaleceu várias medidas problemáticas relacionadas às mulheres. A classe dominante usou de sistemas moralistas como o naewoebŏp (que proibia o contato livre entre homens e mulheres, baseado no Confucionismo) para controlar as mulheres, e o chongbŏp (que regia as relações familiares e alterou negativamente o status das mulheres em relação ao casamento, herança, rituais ancestrais e outros) durante Joseon (HAN, 2004).

Assim, com a imposição de valores extremos e padrões rígidos de comportamento, as mulheres coreanas em Joseon, a dinastia mais longa da Coreia, foram sendo cada vez mais restringidas em suas atividades sociais e direitos (KIM; PETTID, 2011).

1.3 Ocupação japonesa

No período de profundo horror que foi a ocupação japonesa na Coreia (1910- 1945), as mulheres coreanas foram submetidas a uma série de graves violências e opressões. Muitas mulheres e meninas foram forçadas a se tornar “mulheres de conforto”, sendo exploradas sexualmente por soldados japoneses dentro do atroz “sistema de conforto” (AZENHA, 2017), ou coagidas a trabalho forçado em, por exemplo, fábricas – que não deixaram de ser cenário de exploração mesmo após a colonização japonesa (YOO, 2008).

1.4 Pós-guerra e fratura da Coreia em Sul e Norte

No que concerne ao período histórico a partir de 1945 – após a Segunda Guerra Mundial e o fim da ocupação japonesa –, houve esforços para melhorar a posição das mulheres na sociedade coreana. Contudo, a ocorrência de outros fatos e traumas históricos tornaram o cenário ainda mais complexo. Dentre eles, a administração militar estadunidense (1945-1948), a separação da Coreia em Norte e Sul (1945), a guerra da Coreia (1950-1953), a reforma do novo governo e golpes de Estado (décadas de 1960-1980) – com altas doses de autoritarismo, corrupção, instabilidade, repressão política e outros mais (MACEDO, 2018).

Em tese, a Constituição da Coreia do Sul (promulgada em 1948 e revisada em 1987) postulou direitos iguais para os cidadãos do país independentemente de diferenças, incluindo de gênero. Mas, na prática, episódios e períodos como os citados acima e seus efeitos seguiram exercendo forte influência na sociedade e a questão de gênero ainda é um problema em muitas áreas (PARK, 1993).

2. O feminismo na Coreia do Sul

É importante deixar claro, antes de tudo, que as mulheres coreanas sempre participaram do ativismo social e político na península – do que se tem registro, pelo menos desde o Movimento de Independência da Coreia. Segundo Ching e Louie (1995), as origens do feminismo sul-coreano contemporâneo remontam ao movimento popular de base das massas (minjung undong), que se iniciou nos anos 1960. A luta das mulheres, com seu núcleo na época composto por trabalhadoras pobres urbanas e rurais, ganhou força com a participação das mesmas nesse movimento mais amplo, caracterizado pelas lutas trabalhistas, estudantis e pró-democracia, sendo fundamental para o surgimento de grupos feministas mais organizados na Coreia do Sul.

A princípio, o foco do movimento das trabalhadoras foi lutar contra a exploração que sofriam nas fábricas durante o regime do ineleito General Park Chung-Hee (1961-1979), caracterizado pelo autoritarismo e por políticas que levaram a uma crescente desigualdade social no país (CHING; LOUIE,1995).

Mas foi na década de 1980 que o ativismo sul-coreano começou a abordar questões mais específicas de gênero. Desde então, o movimento feminista sulcoreano tem contribuído para conquistas legais e institucionais em relação às mulheres, como referentes a divórcio, violência sexual, trabalho e outros. No entanto, embora a legislação em si seja importante, há lacunas entre a Lei e a realidade na prática. Segundo Koeval (2022), apesar de Leis que buscam proteger os direitos das mulheres, ainda existem muitos desafios a serem enfrentados, incluindo socioeconômicos (como a ainda existente disparidade salarial de gênero e a sub-representação feminina em cargos executivos e políticos), que são potencializados por outras barreiras, se interseccionando com fatores como a classe social. Além disso, que o movimento feminista sul-coreano também é frequentemente “demonizado” pelos setores mais conservadores em uma sociedade ainda altamente patriarcal, onde se vê inclusive certos retrocessos. Isso se manifesta em formas variadas, como em campanhas de difamação online e em discursos e ataques públicos que minimizam ou ridicularizam as questões de gênero.

Conforme Kim (2021), o ativismo feminista sul-coreano tem ganhado mais impulso e popularidade desde 2015, considerando abrangência, alcance e variedade de agendas, e situando-se no contexto histórico e sociopolítico mais amplo da sociedade coreana, incluindo a diversificação dos movimentos sociais na Coreia pós-autoritária, o status precário das mulheres e o aumento da misoginia.

A recente eleição do candidato conservador Yoon Suk-yeol em 2022 como presidente da Coreia do Sul evidencia que crenças misóginas e sexistas sobre as mulheres continuam sendo sustentadas na sociedade sul-coreana em geral, indo na contramão dos direitos de igualdade de gênero (KOEVAL, 2022).

Yoon, que é o atual presidente do país, já inclusive declarou intenções de dissolver o Ministério da Igualdade de Gênero e Família (cuja criação em 2001 foi uma conquista do movimento feminista no país), ameaça que teria sido calculada para atrair homens jovens sul-coreanos autoproclamados antifeministas, que creem que a igualdade de gênero já foi alcançada na Coreia do Sul, “portanto as proteções e políticas destinadas a proporcionar às mulheres mais oportunidades de serem iguais em uma sociedade que tem sido dominada por homens são vistas como desnecessárias” e até “discriminatórias” segundo esses homens, que sentem-se “oprimidos pelo feminismo” (KOEVAL, 2022, p. 50-51).2

3. O ontem, o hoje (e o amanhã) estão entrelaçados

Dado o aqui exposto, se engana, porém, quem crê que as mulheres coreanas levantaram a cabeça só hoje ou nas últimas décadas. Já que, na verdade, ao longo da história as mulheres na península encontraram maneiras de existir, resistir e negociar. Isso inclusive em Joseon (1392-1910), no contexto da complexa interação entre as normas de gênero e a filosofia confucionista, desafiando a noção de que as mulheres sempre foram submissas aos homens nesta sociedade (LEE, 2008).

Entre estas mulheres estão, por exemplo, a imperatriz “Min” Myeongseong (1851-1895), que lutou pela modernização da Coreia e pela proteção do país contra a influência do Japão, e foi assassinada pelos japoneses em 1895; Yun Hui-Sun (1860-1935), que criou e liderou o primeiro exército de civis formado só por mulheres de que se tem registro no país, lutando pela independência da Coreia até seu último suspiro; Yu Gwan-Sun (1902-1920), uma das mais conhecidas ativistas do movimento pela independência, que morreu com apenas dezessete anos em decorrer de ferimentos de torturas pelas autoridades japonesas na prisão (LEE, 2008). E tantas outras que não sabemos e provavelmente nunca saberemos os nomes, mas que ao resistirem dentro do que lhes foi possível (na macro ou na micropolítica), plantaram as raízes e pavimentaram o árduo e longo caminho pelos direitos das mulheres do presente e do futuro, em meio a tantas complexidades, desafios e ambivalências que se atualizam.


NOTAS DE RODAPÉ

1 A imagem escolhida como capa do artigo retrata uma instalação de arte intitulada Red Room, de Yun Suk-nam, considerada pioneira em arte feminista no país. A obra tem o intuito de homenagear as mulheres que sacrificaram suas vidas pela independência da Coreia, algumas delas mencionadas no presente artigo.

2Em matéria de 2022 para a Folha de São Paulo (disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/05/quem-e-yoon-suk-yeol-novo-presidente-dacoreia-do-sul-comparado-a-sergio-moro.shtml), Thiago Mattos (mestre em Relações Internacionais pela UERJ e especialista em Coreia do Sul) aponta que o presidente Yoon tem um perfil próximo ao de Jair Bolsonaro (ex-presidente do Brasil), “uma vez que ambos conseguiram ‘surfar’ a onda conservadora através de múltiplas polêmicas com elogios ao período ditatorial dos dois países e com o desprezo por pautas feministas”.


REFERÊNCIAS

AZENHA, T. S. F. Para além do silêncio: o sistema de conforto e o papel dos movimentos feministas na questão das mulheres de conforto na Coreia do Sul (1905-2015). Dissertação (Mestrado em Estudos Asiáticos) – Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas, 2017.

CHING, M.; LOUIE, Y. Minjung feminism: Korean women’s movement for gender and class liberation. Women’s Studies International Forum, 1995.

HAN, H. S. Women’s Life during the Chosŏn Dynasty. International Journal of Korean History, 2004.

KIM, J. S. The Resurgence and Popularization of Feminism in South Korea: Key Issues and Challenges for Contemporary Feminist Activism. Korea Journal, v. 61, p. 75-101, 2021. DOI: 10.25024/kj.2021.61.4.75.

KIM, Y. M.; PETTID, M. J. Women and Confucianism in Choson Korea: New Perspectives. State University of New York Press, 2011.

KOEVAL, H. C. Cultural Confinement: Challenges to South Korean Feminism. Senior Honors Thesis, Department of Asian and Middle Eastern Studies, University of North Carolina at Chapel Hill. 2022. https://doi.org/10.17615/xc93-za57.

LEE, B. Y. Women in Korean history. Ewha Womans University Press, 2008.

MACEDO, E. U. A Montanha e o Urso: Uma história da Coreia. Publicação independente (eBook). 2018.

PARK, K. A. Women and Development: The Case of South Korea. Comparative Politics, Ph.D. Programs in Political Science, City University of New York, 1993.

YOO, T. J. The politics of gender in Colonial Korea: Education, Labor, and Health, 1910 – 1945. University of California Press, 2008.


APRESENTAÇÃO

Beatriz Lee Bernardi

Redatora e psicóloga (PUC-SP), cursa extensão em Saúde Sexual (IPQ-USP) e é pesquisadora associada à Curadoria de Estudos Coreanos (CEÁSIA-UFPE). Filha de brasileiro com coreana, investiga a cultura materna desde que descobriu o movimento asiático-brasileiro em 2015, buscando resgate histórico-cultural.

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