Cloroquina, hidroxicloroquina e controvérsias em rede

Por Cecília Almeida Rodrigues Lima | Professora do DCOM-UFPE

Se durante esse período de distanciamento social você tem acompanhado os noticiários e as redes sociais, certamente deve ter ouvido falar em dois nomes difíceis de pronunciar que se tornaram o centro das atenções: cloroquina e hidroxicloroquina.

Em razão da polêmica em torno dos medicamentos, realizamos um estudo especial baseado no monitoramento dos termos “cloroquina” e “hidroxicloroquina” no Twitter. Divulgamos os primeiros resultados desse levantamento neste breve estudo.

Entenda a controvérsia

Em meio a uma crise de saúde pública sem precedentes, pesquisadores vêm tentando trazer respostas e encontrar formas de combater o novo coronavírus. Uma das alternativas é recorrer a fármacos já conhecidos pelo mercado, para tentar agilizar os resultados, por se tratar de uma emergência. Alguns pesquisadores têm defendido o uso da cloroquina, medicamento utilizado contra a malária há quase 80 anos, e de um derivado da substância, a hidroxicloroquina, usado no tratamento de doenças autoimunes como artrite reumatoide e lúpus.

Ainda em fevereiro, um estudo publicado na revista Nature por pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan (cidade onde foram identificados os primeiros casos do novo coronavírus), concluiu que a cloroquina era segura, de baixo custo e potencialmente aplicável ao novo vírus. Essa pesquisa  se limitou a testes de laboratório, de modo que não necessariamente ela indica que haverá sucesso em humanos. No mês seguinte, um estudo publicado por cientistas franceses no International Journal of Antimicrobial Agents defende que a hidroxicloroquina, combinada com outros medicamentos, fez a carga viral em pacientes com a covid-19 reduzir ou desaparecer. A pesquisa não avaliou se houve melhora clínica nos pacientes, mas a carga viral na mucosa do nariz. Neste caso, também houve comparação dos resultados com um grupo de controle, o que poderia sugerir conclusões falsas. Se quiser ler mais sobre esse assunto, recomendamos esse conteúdo do Nexo, de onde extraímos algumas dessas informações.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) se posicionou sobre a cloroquina, esclarecendo que, embora haja indícios de que o remédio pode ter impacto sobre alguns pacientes, ainda não existe tratamento efetivo ou drogas comprovadas contra o novo coronavírus.

Em 19 de março, o presidente estadunidense Donald Trump anunciou que a FDA (agência responsável por medicamentos e alimentos do país) aprovou a hidroxicloroquina em caráter experimental para tratar pacientes com o covid-19. Isso gerou um efeito manada, levando multidões às farmácias em busca de medicamentos com a substância. Como não havia necessidade de prescrição médica nem retenção de receita, isso levou ao desabastecimento em farmácias do país, deixando sem remédio as pessoas que precisam da hidroxicloroquina de forma contínua. No dia 20 de março, a Anvisa enquadrou a hidroxicloroquina e a cloroquina como medicamentos de controle especial.

Se consumida sem orientação, o fármaco pode causar efeitos colaterais graves como arritmias, hepatite, pancreatite e choque anafilático. Nos Estados Unidos, um homem morreu e sua mulher foi hospitalizada após se automedicarem ingerindo uma forma de cloroquina, o fosfato de cloroquina, um produto usado na limpeza de aquários. Na Nigéria, duas pessoas se intoxicaram e foram hospitalizadas depois de consumir a substância.

Diversos pronunciamentos recentes do presidente Jair Bolsonaro defendem o uso dos medicamentos, mesmo sem comprovação científica da sua eficácia. O presidente chegou a exibir caixas do remédio para propagar seu uso. Alguns de seus vídeos nas redes sociais chegaram a ser removidos pelo Facebook e Instagram por violarem os termos de uso dessas empresas. No dia 31 de março, em seu último pronunciamento em rede nacional, citou os medicamentos como promissores, mas amenizou o tom, fazendo a ressalva de que ainda faltam testes para que o remédio possa ser liberado para a população geral.

Em caráter emergencial, o Ministério da Saúde divulgou que disponibilizará os medicamentos para uso em pacientes com formas graves da Covid-19. A Anvisa anunciou que aprovou a condução do primeiro estudo para a cloroquina e a hidroxicloroquina no Brasil. “Os resultados desse e de outros estudos são necessários para que a Agência possa concluir quanto à segurança e à eficácia desses medicamentos no tratamento da Covid-19”, diz a nota.

Em entrevista ao Nexo, a bióloga Natalia Pasternak sinaliza que, devido à emergência, várias das etapas que seriam necessárias para um estudo científico já foram ignoradas. “Numa pesquisa tradicional isso levaria anos para ser feito. O que a gente está fazendo agora é realmente uma situação de emergência. Não dá pra pular mais etapas do que isso. Isso que é difícil explicar. As pessoas querem que o remédio seja liberado sem saber nada sobre ele. Isso não dá. Se a gente pular tanta etapa assim, a gente pode prejudicar pessoas”. O Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta tem defendido a mesma posição, afirmando que os estudos sobre os fármacos ainda são frágeis.

A temperatura das redes

A controvérsia científica foi um prato cheio para o acirramento das disputas políticas e ideológicas nas redes.

O Google Trends sinaliza um aumento repentino nas pesquisas pelos fármacos em todo o Brasil, entre 15 e 28 de março, com buscas associadas aos termos “coronavírus” e também ao antibiótico “azitromicina”, que vem sendo combinado aos medicamentos em alguns estudos.

O clima de grande interesse e incertezas em torno do assunto favorece a desinformação. Para compreender melhor esse cenário nas redes, realizamos uma coleta de dados no Twitter utilizando a ferramenta gratuita TAGS, entre 31 de março e 04 de abril. Foram capturados 12.464 tweets que citavam “cloroquina” ou “hidroxicloroquina”. Esse volume não corresponde ao total de tweets com as palavras-chave, mas a aqueles que estavam publicamente disponíveis pela API (Application Program Interface) do Twitter e foram coletados pela ferramenta. 

Em média, foram coletados  2.570 tweets por dia. Essas mensagens foram publicadas por 9.443 perfis na rede social, com uma média de 3.926 seguidores cada (a mediana é de 396). Em média, cada perfil da base de dados publicou 1,3 vezes. Cerca de 19% dos perfis está acima dessa média de publicações. 

Identificamos que 89% dos tweets na nossa amostra, na verdade, eram retweets – ou seja, compartilhavam o conteúdo de algum outro usuário na rede. Os tweets abaixo se destacaram pela quantidade de vezes que foram compartilhados. O primeiro, do presidente Bolsonaro, é um anúncio oficial em relação a novas medidas que foram tomadas pelo Governo Federal no combate à pandemia.

O segundo tweet que destacamos, produzido pelo assessor especial de Bolsonaro, Arthur Weintraub, é uma provocação aos seus críticos, a quem ele chama de “zumbis”. Na mensagem, ele, que é professor de Direito, afirma que poderia ele mesmo ser o diretor da OMS, por ter feito uma pesquisa de pós-doutorado na área de Direito Atuarial e Previdenciário, no contexto da epilepsia. Caso tenha interesse em verificar, a pesquisa rendeu um artigo disponível na revista Âmbito Jurídico. Embora de fato tangencie  as ciências da saúde, abordando a epilepsia, o foco são os “aspectos legais e técnicos de epilepsia e seus reflexos dentro da Seguridade Social no Brasil”. 

Por esses e outros conteúdos, Bolsonaro e seu assessor foram os perfis mais mencionados no período. Além dele, o economista Hélio Beltrão, Presidente do Instituto Mises, também teve destaque. Ele defendeu a liberação da cloroquina e hidroxicloroquina, chegando a anunciar que está formando uma rede informal de fornecimento do remédio.

O grafo abaixo, elaborado no Gephi, mostra a rede de interações entre os atores que participaram dessas conversas. No mapa, estão destacados os 10 perfis que tiveram maior número de citações, sendo que quanto maior o nome do perfil, mais mencionado ele foi.

O grafo apresenta uma rede bastante conectada, onde os nomes mais mencionados são perfis que atuaram em defesa da liberação do uso dos medicamentos. A rede ao redor de Bolsonaro (de cor lilás) também mencionou o perfil oficial das Forças Armadas, os perfis de Donald Trump, Eduardo Bolsonaro e Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Isso demonstra que a narrativa em torno do tema é essencialmente política.

A grande centralidade de atores que defendem a liberação da cloroquina e exaltam os resultados mais animadores do medicamento não significa que há consenso sobre o tema no Twitter. A rede que considera temerária a liberação de um medicamento sem comprovações também demonstrou força, embora de forma mais descentralizada, sem girar em torno de perfis específicos. Entre as mensagens que mais circularam, destacamos os tweets abaixo, que foram amplamente replicados. O primeiro foi um vídeo publicado por Bruno Sartori, que ironizava o presidente Bolsonaro a partir de uma paródia da música Florentina, de Tiririca. Sartori é jornalista e produz conteúdos de humor em vídeo utilizando a tecnologia de deepfake, ou seja, uma técnica de síntese de imagens ou sons humanos baseada em  inteligência artificial.

O segundo foi tuitado pela deputada federal Jandira Feghali (PCdoB) e faz críticas a uma declaração feita por Bolsonaro em seu pronunciamento, em que o presidente especulou sobre a possibilidade de o tratamento com cloroquina variar de acordo com a raça do indivíduo. No entanto, embora Feghali tenha considerado a fala como absurda, aproveitamos para mencionar que existe um ramo das Ciências de Farmácia chamado farmacogenética, a ciência que estuda a variabilidade genética dos indivíduos com relação a medicamentos específicos. Alguns usuários responderam o tweet da deputada com essa ponderação.

Das 12.464 menções coletadas, a maior parte (82%) trazia declarações, opiniões ou relatos sem nenhum link onde se pudesse verificar a fonte. Entre os defensores da cloroquina, há certa homogeneidade no discurso de que o remédio é “a solução” para a pandemia e que as autoridades brasileiras e estão demorando demais a agir. Foram recorrentes os depoimentos que testemunhavam a melhora surpreendente de pacientes em estado grave a partir do uso do remédio. A liberação do remédio pela FDA e a declaração de Donald Trump de que adquiriu 29 milhões de doses de hidroxicloroquina foram informações citadas como argumento para pressionar o Ministério da Saúde e influenciar a opinião de usuários. A mídia tradicional, especialmente o Grupo Globo, foi acusada de disseminar o caos e de omitir os bons resultados do remédio por ser contra o governo.

Entre os mais críticos à liberação do remédio, foram verificados principalmente comentários que enfatizavam os efeitos colaterais, estudos que colocam em dúvida a eficácia dos remédios e ataques ao presidente, criticado por estar se precipitando ao promover os medicamentos e encorajar o seu uso. Na opinião desse grupo, o presidente está encontrar uma solução milagrosa a qualquer custo, na tentativa de antecipar o fim do isolamento social. O momento em que esse grupo mostrou mais força foi justamente o dia 31 de março, antes e durante o pronunciamento de Bolsonaro na televisão. Na data, o presidente havia citado um discurso da OMS de forma distorcida para criticar o isolamento social. No Twitter, foi acusado de irresponsável e de propagar desinformação, por continuar promovendo um medicamento sem que haja comprovação científica. 

Mandetta: relação de amor e ódio

O Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, foi citado em 9% dos tweets coletados. No dia 31 de março e 1 de abril, logo após o pronunciamento de Bolsonaro em rede nacional, verifica-se que a maioria das menções que citavam o ministro eram neutros (meramente factuais) ou elogiosos, produzidos por opositores do governo. No dia 2, circulou amplamente a informação de que Bolsonaro havia convocado uma reunião sobre estudos acerca de cloroquina, e que Mandetta não havia sido convidado a participar. A partir daí, ficaram mais evidentes na imprensa as discordâncias entre o presidente e o ministro, e o tom começou a variar. Nos últimos dois dias, tornaram-se cada vez mais recorrentes as mensagens de ataque ao Ministro, chamado inclusive de inimigo do governo e de irresponsável em algumas mensagens. No dia 04, praticamente 100% dos conteúdos que citaram Mandetta foram produzidos por apoiadores do presidente e tinham teor negativo.

Abaixo, a nuvem de palavras mostra os principais termos utilizados em correlação com o nome do Ministro no dia 04 de abril. Atenção para termos como “vergonha”, “libere”, “fda”, “errado”, “irresponsabilidade”, entre outros que indicam a insatisfação dos usuários com a postura do Ministro.

Você é humano?

Numa análise dos 100 perfis que tuitaram mais vezes em toda a base de dados, verificamos, com o auxílio da ferramenta Pegabot, que 64% apresentam comportamento similar ao de robôs, com mais de 80% de probabilidade de se tratarem de contas automatizadas disfarçadas de seres humanos. O Pegabot é um projeto do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e do Instituto Equidade & Tecnologia que tem o objetivo de identificar bots a partir da análise de padrões de perfis nas redes sociais.

Embora não seja infalível, a estimativa indica, ao menos, um padrão de comportamento repetitivo. O alto percentual de perfis com comportamento robótico indica que a disseminação de conteúdo sobre a cloroquina e hidroxicloroquina pode estar sendo impulsionada de forma artificial, podendo confundir outros usuários e contribuindo ainda mais para o clima de desinformação.

Novas análises a partir dessa mesma base de dados serão compartilhadas aqui no Coronavírus em xeque assim que estiverem disponíveis