Coronavírus, “Guerra cultural” e “Terraplanismo Sanitário”
Cynthia Hamlin | Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE
“Essa epidemia simplesmente não existe. Você não tem um único caso confirmado de morte por coronavírus porque, para confirmar, você precisa fazer o exame de cada órgão do falecido. (… ) Isso daí é a mais vasta manipulação da opinião pública na história da humanidade” (Olavo de Carvalho).
Nenhuma narrativa da “guerra cultural” da extrema direita conseguiu ser mais grotesca do que essa. Quando o guru do núcleo duro do governo Bolsonaro disse isso, a pandemia já havia matado quase 15.000 pessoas no mundo inteiro e o Ministério da Saúde registrava mais de 1.500 infectados e 25 mortos por coronavírus no Brasil.
Embora pareça ter chegado ao seu limite máximo, esse tipo de narrativa não é novo, mas constitui o que John Cook, professor de ciências cognitivas do Centro de Comunicação sobre Mudanças Climáticas da Universidade George Mason, chama de “codificação do negacionismo”: uma estratégia que combina o recurso a falsos especialistas, falácias lógicas, expectativas irreais, seleção minimalista dos fatos e teorias da conspiração.
Mais recentemente, com o aprofundamento da crise da democracia liberal e a “virada à direita” em grande parte do mundo – a exemplo do Trumpismo nos EUA, do Bolsonarismo no Brasil, de Boris Johnson no Reino Unido, Erdogan na Turquia, Orban, na Hungria, além do crescimento dos partidos nacionalistas na Áustria, França, Alemanha, Suíça, Itália, Dinamarca e República Tcheca – a chamada “guerra cultural” vinha se fundamentando sobre três supostos pilares que deveriam ser combatidos: o “globalismo”, o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”. O foco recaiu, sobretudo, nas ciências sociais, entendidas de forma ampla.
Por mais que se revelem frágeis do ponto de vista teórico e empírico, essas narrativas da extrema direita não são completamente dissociadas dos discursos produzidos na academia: o “marxismo cultural” consiste basicamente em uma distorção da tradição do marxismo ocidental, sobretudo de Gramsci e da primeira geração da Escola de Frankfurt; o “globalismo” numa distorção ultra-nacionalista das críticas efetuadas por acadêmicos à dimensão política da globalização; a “ideologia de gênero”, numa distorção das teorias de gênero, sobretudo da teoria queer. A novidade do momento parece ser uma espécie de “terraplanismo sanitário” que elevou a “guerra cultural” a um plano mais mortífero.
A relação com algum tipo de discurso acadêmico não é casual: a ideia é que, ao se contraporem à produção acadêmica e científica, autointitulados filósofos adquirem parte do capital social e, supostamente, cultural, que caracteriza o campo científico. Legitimam-se, a olhos leigos, como atores desse campo, embora ignorem por completo uma de suas regras mais fundamentais: o debate entre pares. Dessa forma, embora deem a impressão de se engajarem em um debate com seus opositores, a lógica é outra. Não se trata de um debate com opositores, mas de um ataque a inimigos, o que inviabiliza qualquer tipo de diálogo.
Ao se caracterizar como um poderoso conjunto de crenças sobre o que e em quem devemos acreditar, o populismo de direita aparece como um projeto epistêmico alternativo, como um sistema que organiza e produz aquilo que conta como conhecimento e como verdade. Por essa razão, uma parte fundamental desse projeto é o ataque virulento e sistemático a instituições de ensino, pesquisa, a mídia e outros atores ligados à produção cultural, entendida em sua acepção mais ampla. De um ponto de vista desses atores, este projeto epistêmico pode ser caracterizado como um projeto de produção e distribuição social da ignorância.
Esse tipo de “narrativa epistemológica”, profundamente ligado à produção de dúvida e descrença nas fontes estabelecidas de conhecimento e de informação, faz com que a ignorância não mais apareça como o simples oposto do conhecimento, como uma espécie de vazio que o antecede ou como a privação de conhecimento resultante do foco de interesse em um aspecto particular da realidade. A ignorância é, aqui, resultado de uma construção ativa, de uma manobra estratégica da “guerra cultural” cujo objetivo é relativizar e/ou substituir posições bem estabelecidas em comunidades acadêmicas e científicas por meio do bloqueio da informação, da criação da desinformação ou, pura e simplesmente, da mentira.
Deturpação, supressão de informação, ataques pessoais a indivíduos e grupos cujas pesquisas são corroboradas pela comunidade científica, além da defesa de posições tão estapafúrdias que sequer chegam a abalar o consenso científico geram, no público leigo, a impressão de que há controvérsias sobre temas que a comunidade científica internacional considera absolutamente resolvidos, como é o caso da pandemia que vivemos agora.
Obviamente que há nuances. Mesmo a “Mito-mania” mais extrema raramente se sustenta sobre tal grau de idiotia e de cinismo. Muita água ainda vai rolar antes que a comunidade de cientistas da área de saúde consiga criar consensos relativos em torno de questões como o uso de determinados medicamentos ou das melhores estratégias de achatamento da curva de contaminação pelo vírus para os diferentes contextos envolvidos em um problema dessa magnitude. Contudo, mais do que nunca, há que se atentar para a diferença fundamental entre a prática da dúvida que caracteriza o ethos científico, por um lado e, por outro, a estratégia da dúvida que caracteriza o discurso da extrema direita contemporânea.
A prática da dúvida diz respeito a um certo grau de ceticismo epistemológico que é central não só à ciência, mas também à arte, ao bom jornalismo e, em última instância, à própria democracia. Já a estratégia da dúvida é algo diferente: trata-se de um empreendimento levado adiante por indivíduos e grupos que buscam semear a dúvida e o dissenso com fins puramente políticos e/ou econômicos. Ao fazê-lo, a contestação e a controvérsia não aparece mais como uma busca cooperativa por ideais como a verdade, a justiça ou a liberdade, mas como sua própria impossibilidade.
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