ENSAIO | Entre pachinkos e minaris: identidade coreana em Min Jin Lee e Lee Isaac Chung [1]

ENSAIO | Entre pachinkos e minaris: identidade coreana em Min Jin Lee e Lee Isaac Chung [1]

Por Alexsandro Pizziolo [2]

Figura 1 – Minari (2020), de Lee Isaac Chung. Fonte: IMDB

O presente ensaio tem como objetivo oferecer uma leitura possível do livro Pachinko,da escritora coreana Min Jin Lee, e do filme Minari, do diretor norte-americano Lee Isaac Chung, a partir da singularização de elementos específicos das narrativas que criam, em ambas as mídias, uma concepção própria de identidade coreana a partir de elementos culturais próprios à cultura coreana.

Muitas relações podem ser feitas entre as duas obras, a começar pelo fato de serem de autoria coreano-americana. Min Jin Lee (1968) emigrou para os Estados Unidos com os pais aos sete anos, em 1976, e construiu sua carreira profissional e acadêmica no país. Pachinko, seu segundo romance, foi gestado desde a década de 1980 e, até ganhar as prateleiras do mundo anglófono em 2017, passou por uma série de reescritas. Nesse intervalo, a autora morou no Japão durante um período em que realizou uma série de entrevistas com os Zainichi, coreanos com status de moradia permanente ou naturalizados japoneses, que em sua maioria foram para o Japão na época em que o país ocupava a península coreana (1910-1945). Lee pesquisou em arquivos e leu extensa bibliografia, mas foi nas entrevistas que achou o verdadeiro substrato daquilo que ela gostaria de contar em Pachinko (originalmente intitulado Motherland, “terra natal” em tradução livre), compilando essas histórias na saga épica de uma família de coreanos que se passa entre as décadas de 1910 e 1980, em meio a ocupação japonesa da Coreia, num exercício hercúleo de condensar o máximo de experiências e vivências daqueles estrangeiros numa terra na qual não eram bem-vindos.

Já Lee Isaac Chung, nascido nos Estados Unidos em 1978, de pais coreanos, em Minari, lançado em 2020 nos cinemas, faz uma espécie de fabulação de suas próprias memórias de infância, ao contar a história de uma família de imigrantes coreanos recém-realocados no Meio-Oeste norte-americano, quando compram um terreno onde o patriarca acredita que, com sua plantação de legumes coreanos, a família vai finalmente achar um rumo e ter alguma espécie de chão (literal e figurativamente) em que se sustentar.

O ponto de interseção que será o foco de minha análise está na operação que identifico em ambas as narrativas da escolha de dois elementos muito particulares da cultura coreana (nipo-coreana no caso de Lee) para usar como metonímia do que os dois autores estão querendo construir de identidade coreana num contexto de imigração. Ambos os elementos também estão presentes nos títulos das obras. Minari, como explica a personagem Soon-ja – a avó da família, que vem da terra natal para ajudar a filha na criação dos netos –, é uma planta que germina em qualquer solo, independente do clima. Faça chuva ou faça sol, a minari sempre floresce. Já pachinko, uma espécie de jogo de azar, atualmente febre no Japão, no romance de Min Jin Lee é perpetuamente associado pelos japoneses à suposta natureza escusa dos coreanos, sendo uma área de negócios notadamente dirigida por coreanos e que, na trama, funciona como uma realidade inevitável apesar dos esforços das personagens para se desvencilharem dela.

Figura 2 – Fonte: Curadoria de Literatura Asiática

Pachinko, segundo sua autora, é o primeiro romance escrito em língua inglesa a narrar a ocupação japonesa da Coreia e a experiência dos coreanos que até hoje se veem sem pátria, com o status permanente de estrangeiros mesmo tendo nascido no território japonês. O livro segue a história de Sunja, uma jovem habitante da ilha de Yeongdo, uma pequena comunidade de pescadores ao sul da península coreana. Aos 17 anos, a jovem acaba caindo nos encantos de um imponente mercador coreano, que transita livremente entre a Coreia e o Japão. Ela acaba engravidando e, ao anunciar a novidade, é confrontada com a verdade de que Hansu possui uma esposa e duas filhas no Japão. Mesmo com a proposta de mantê-la como amante, provendo teto e sustento ao filho, a jovem recusa e encerra o breve enlace. Paralelamente, na pensão em que Sunja administra com a mãe, Yangjin, as duas recebem um pastor cristão, Baek Isak, a caminho de assumir seu posto numa paróquia em Osaka (no Japão), que cai doente numa grave crise de tuberculose. Uma vez curado, em agradecimento ao tratamento despendido pelas duas, o pastor resolve assumir o filho de Sunja e levá-la para Osaka, onde os dois iniciarão sua própria família.

Pachinko cobre um período de quase 80 anos de história dessa família e uma das relações que podemos fazer com a simbologia do pachinko pode estar relacionada à trajetória dos dois filhos de Sunja: Noa e Mozasu. Noa, filho de Hansu e o mais velho, é a típica figura do imigrante domesticado, melhor aluno de sua classe, com pronúncia impecável de japonês e, quando adulto, quer estudar na universidade em Tóquio, contrariando todas as expectativas – constantemente reafirmadas durante a história – relegadas aos coreanos naquele contexto. Já Mozasu, filho de Isak e o caçula, é o oposto de seu irmão, não se adequa à cultura apaziguadora japonesa, é péssimo na escola e tem em seu corpo sua maior arma. É a intelectualidade versus a fisicalidade.

Embora o comportamento e as aspirações dos irmãos sejam diametralmente opostos, ambos acabam indo trabalhar no negócio tão rechaçado. Mozasu, jovem rebelde, brigão, é levado a trabalhar de auxiliar numa casa de pachinko por um amigo da família, numa tentativa de controlar o temperamento esquentado do jovem e a mantê-lo longe de problemas com a polícia japonesa. Lá, Mozasu floresce e faz do pachinko o negócio de sua vida, virando dono de uma redes no futuro e enriquecendo. Já Noa, quando descobre a verdadeira origem de seu nascimento, resolve abdicar das ambições acadêmicas e se exilar da família, procurando abrigo longe de Osaka, renegando a si e a sua natureza coreana, fazendo se passar por japonês na cidade de Nagano. Lá, a única oportunidade de trabalho que encontra é justamente numa casa de pachinko que só contrata japoneses. Eventualmente, mesmo negando sua origem, Noa teve que se contentar em ser aquilo que era previsto para a sua gente, mesmo que a renegasse.

Sendo assim, há em Pachinko uma tentativa de associação direta entre o destino das personagens e essa percepção que passa tanto pelo julgo japonês e a própria imagem que os coreanos fazem de si mesmos no romance. Uma espécie de incapacidade de escapar do próprio destino, da própria identidade. Seja no sucesso de Mozasu ou na derrocada de Noa, aos coreanos está guardado o lugar do escuso, das sombras, do subemprego, do bairro pobre. E isso está tanto no campo da mentalidade quanto na burocracia do estado, como é possível ver no capítulo em que Solomon (filho de Mozasu), um jovem rico, em seu aniversário de 15 anos precisa fazer a renovação de seu passaporte, estendendo o período em que pode ficar no país, o único que ele reconhece como casa, onde nasceu e foi criado. Esse sentimento de estranhamento e não-pertencimento perpassa não só as personagens centrais, mas também as inúmeras personagens secundárias, em situações corriqueiras que constroem um universo repleto de símbolos que podem servir de objeto de apreensão de uma compreensão de mundo proposta pela autora do romance.

Figura 3 – David (Alan Kim), o personagem central de Minari. Fonte: IMDB.

Por outro lado, Minari, um filme dirigido e roteirizado por um norte-americano, produzido pela produtora norte-americana Plan B, rodado no estado de Oklahoma, com uma equipe majoritariamente americana, é falado em coreano e estrelado por atores coreanos. O filme narra a típica história do sonho americano, mas com um twist. Não fosse algumas poucas trocas entre as personagens protagonistas e alguns locais, o filme poderia se passar em qualquer lugar do mundo, até mesmo na Coreia, pois trata de uma paisagem campestre, interiorana, isolada do centro urbano. A família funciona como uma espécie de cosmos em si mesma e, embora nós, como espectadores, sejamos levados ao mundo do trabalho no emprego de meio-período em que os pais separam pintinhos por sexo, é no âmbito doméstico que a maior parte da história se passa.

O filme começa com a chegada dessa família a uma nova casa, num terreno comprado no interior do Arkansas em 1983. O casal Jacob e Monica Yi e seus filhos, Anne e David, precisam se adaptar à nova realidade e fazer essa nova empreitada acontecer. Com pouco tempo de projeção temos a adição de um novo elemento à dinâmica familiar, a chegada da avó Soon-ja (interpretada pela veterana Youn Yuh-jung, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel). Boa parte da ação do filme se concentra no período de adaptação do jovem David, de 7 anos, a uma figura de autoridade que traz valores e referências culturais completamente estranhos ao menino, a avó. Tudo é tratado com muita comicidade no filme, que desenvolve bastante as relações entre as personagens, todas a partir da percepção de David – sua relação com o pai e a terra, o casamento dos pais e situações de estranhamento entre coreanos e americanos etc.

Não só Jacob luta contra a terra para fazer seu investimento se pagar e a colheita prosperar, como ele e Monica lutam na forma como os dois enxergam a ida da família ao Arkansas. Para ele, trata-se de uma chance na vida; para ela, uma nova chance ao casamento. Essa ideia de recomeço é constantemente reforçada ao longo do filme, primeiramente com a própria emigração da família para o território americano, depois com a mudança para o Arkansas e a aquisição do pedaço de terra, a vinda da avó e, ao final, depois de uma série de obstáculos e acontecimentos trágicos – um incêndio e uma morte –, a família se vê novamente prestes a iniciar mais um movimento de renovação e recomeço, afinal de contas, eles são como minari – germinam em qualquer lugar, não importa a condição do solo. A materialidade da planta se alia ao espírito do que é ser coreano, ambos definem-se pela resiliência.

Ao final, é como se tanto o filme de 2020 quanto o romance de 2017 chegassem à mesma conclusão: a reificação dos respectivos símbolos está aliada à tese que se propõe a respeito da identidade coreana atribuída às personagens em ambas as narrativas. Em Minari, ao final, a família Yi depois de passar por uma série de desafios e entraves se vê fortificada, reunida e, tal qual a planta, germinando num solo novo, a América. Já em Pachinko, gerações e décadas depois, os integrantes da família Baek lidam com a fatalidade de serem coreanos numa terra que não os respeita, não os quer e não os reconhece, objetivo primordial da narrativa de Min Jin Lee.


NOTAS DE RODAPÉ

[1] No primeiro semestre de 2023, a Curadoria de Literatura Asiática (CEÁSIA/UFPE) promoveu debates entre os pesquisadores associados sobre obras de autores asiáticos selecionadas. (Desafio da Curadoria de Literatura Asiática) Entre as obras, Pachinko foi a que mais despertou o interesse dos leitores.

[2] Alexsandro Pizziolo é pesquisador associado da Curadoria de Literatura Asiática (CEÁSIA/UFPE). Historiador e tradutor. Mestrando em Estudos da Linguagem (PUC-Rio). Atua na interseção entre os Estudos da Tradução, os Estudos Literários e a História. Pesquisa a História da Literatura Coreana e a Literatura Coreana traduzida no Brasil.


REFERÊNCIAS

LEE, Min Jin. Pachinko. Londres: Apollo, 2017.

MINARI. Direção e Roteiro: Lee Isaac Chung. Produção: Dede Gardner, Jeremy Kleiner e Christina Oh. Plan B, 2020. 115 min., son., color., DCP.

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