
Quando os culpados por uma tragédia não podem ser presos: a relação entre políticas neoliberais sul-coreanas com a tragédia da Balsa Sewol
por Guilherme Henrique Ferreira
Póvoa e Maria Clara Lima Abrão
Imagem: Estudantes fazem homenagem às vítimas do naufrágio em 2015. Fonte:
https://www.bostonglobe.com/news/world/2015/04/11/legacy-ferry-
sinking/KXLyRrQu7o2FlGXLGRjooL/story.html
Onze anos atrás, os jornais sul-coreanos reportavam o naufrágio da Balsa Sewol. Onze anos atrás, a Coreia do Sul se mobilizava em busca de respostas, apontamento de culpados e, sobretudo, justiça.
Em 16 de abril de 2014, a balsa Sewol partiu de Incheon rumo a Jeju e, próximo à ilha
de Jindo, após uma curva repentina, começou a afundar. Sem instruções para abandonar a embarcação, 304 dos 476 passageiros, em sua maioria alunos do ensino médio, foram vítimas da maior tragédia marítima sul-coreana, enquanto a tripulação e o capitão deixaram o navio (Choi; Kim, 2024).
A tragédia chocou profundamente a população e o capitão da balsa, Lee Jun-Seok, foi condenado à prisão perpétua e outros 14 membros da tripulação cumpriram pena de prisão. Todavia, essas medidas pouco denotam um senso de justiça perante o ocorrido. Para You e Park (2017), se tratou de um desastre provocado pelo ser humano, uma vez que as normas de segurança não foram cumpridas e os resgates efetuados pela Guarda Costeira não foram eficazes. Os principais causadores de todos esses eventos não foram nem Lee Jun-Seok, nem os tripulantes, e sim, a Companhia Marinha Chonghaejin (청해진해운), um pequeno chaebol¹ (Doucette, 2024), e, sobretudo, as políticas neoliberais que imperam no sul da península.
As políticas neoliberais implementadas pelo governo de Lee Myung-bak (2008–2013)
permitiram que navegações com mais de 20 anos de serviço se mantivessem em
funcionamento por até 30 anos, o que atingiu diretamente a balsa Sewol, construída por uma empresa japonesa em 1994, aposentada por esta e comprada pela empresa coreana em 2012 após a medida de Lee (Suh, 2014). No governo vigente de Park Geun-hye (2013–2017), a presidente esteve incontatável enquanto a balsa naufragava e, horas depois, ao ser questionada, disse “se os passageiros estão vestindo coletes salva-vidas, por que é tão difícil encontrá-los?” (Suh, 2014 p. 8, tradução nossa² ), demonstrando desconhecimento completo da tragédia, uma vez que as vítimas estavam presas no navio, conforme orientação dos tripulantes. Além disso, houve hostilidade às famílias das vítimas, consideradas agitadoras e pró-governo da Coreia do Norte ao protestar contra a resposta insuficiente do governo, sobretudo no resgate dos passageiros a bordo (Doucette, 2024).
A tragédia está relacionada a políticas neoliberais de desregulação e privatização que permitiram que a Chonghaejin fizesse diversas mudanças na balsa, como a adição de mais andares e espaço de carga e violações que passaram despercebidas pelas agências reguladoras, cujo caráter é privado. No dia 16, Sewol carregava 124 carros, 56 caminhões e 1157 toneladas de carga — mais do que o dobro do máximo comportado (Rhee, 2018) —, o navio não fora inspecionado corretamente, a métrica para apontar sobrecarga foi somente observar a marcação no casco da embarcação e, na tentativa de mascarar a sobrecarga, colocou-se somente parte da água de lastro de vida, necessária para manter o navio acima do nível do mar, o que prejudicou diretamente a estabilidade do navio (Choe, 2014). Outrossim, o capitão e a maioria dos tripulantes eram trabalhadores temporários com salários 30% abaixo da média, cujo treinamento de segurança custou, durante o ano de 2013, U$ 540 para a companhia Chonghaejin (Suh, 2014)³ , o que remonta ao descuido que tiveram com os passageiros durante o desastre.
No que tange às ações do governo, além da extensão do período de serviço de balsas e navios, com o intuito de poupar U$ 20 milhões por ano, o Ministério responsável pela terra e mar buscou desregular e facilitar o acesso de empresas privadas, beneficiando variadas corporações, dentre elas a Chonghaejin. Além disso, após o tombamento da balsa, que demorou horas para afundar completamente, as medidas de resgate foram completamente insuficientes e a maioria dos passageiros que sobreviveram, pularam do navio e foram resgatados por pescadores que se aproximaram ao observarem a tragédia. Uma empresa de engenharia oceânica foi contratada pela Chonghaejin para realizar o resgate, como recomendação da Guarda Costeira, embora não tivesse profissionais treinados para resgate e, de fato, não resgatou uma única pessoa e agiu mais preocupada em recuperar pedaços da balsa (Suh, 2014).
Portanto, notam-se os efeitos da ordem e do sistema neoliberal nas ações das empresas e do Estado e em como a tragédia de Sewol poderia ter sido evitada ou menos fatal se um resgate digno tivesse ocorrido, normas não tivessem sido desmontadas e fiscalizações tivessem sido feitas. Centenas de pessoas faleceram há 11 anos em uma tragédia provocada direta e indiretamente pelo neoliberalismo e pela Chonghaejin e, embora o capitão e alguns tripulantes tenham sido condenados e presos, milhares de pessoas permanecem sofrendo os efeitos dessa sociedade precária, marcada por uma economia de mercado de um Estado não-intervencionista incapaz de proteger seu povo.
NOTAS:
1 O termo chaebol (재벌) é um termo referente a conglomerados empresariais da Coreia do Sul, comumente administrado por famílias. Alguns chaebols conhecidos são a Samsung, Hyundai e LG.
2 “If the passengers are wearing life vests, why is it so hard to find them?” (Suh, 2014 p. 8).
3 Em comparação, os gastos com Relações Públicas da empresa fora U$ 230.000 e de Entretenimento, U$ 100.000 (Suh, 2014).
REFERÊNCIAS:
CHOE, Sang-Hun. 4 Employed by Operator of Doomed South Korean Ferry Are
Arrested. The New York Times, Asia Pacific. Nova Iorque: mai. 2014. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2014/05/07/world/asia/employees-of-south-korean-ferry-operator-are-arrested.html. Acesso em: 25 fev. 2025.
CHOE, Sang-Hun . S. Korea moves to tighten safety rules after ferry disaster. The
New York Times, Boston Globe. Bostonglobe.com, abr. 2015. Disponível em:
https://www.bostonglobe.com/news/world/2015/04/11/legacy-ferry-sinking/KXLyRrQu7o2FlGXLGRjooL/story.html. Acesso em: 25 fev. 2025.
CHOI, Sebin; KIM, Dogyun. Sul-coreanos ainda buscam respostas 10 anos após o
desastre da balsa Sewol. MarineLink. 16 abr. 2024. Disponível em: https://pt.marinelink.com/news/sul-coreanos-ainda-buscam-respostas-anos-ap%C3%B3s-balsa-297824. Acesso em: 20 fev 2025.
DOUCETTE, Jamie. The Postdevelopmental State: Dilemmas of Economic
Democratization in Contemporary South Korea. University of Michigan Press, 2024.
Disponível em:
https://library.oapen.org/bitstream/handle/20.500.12657/92852/9780472904686.pdf;jsessioni d=D2A054FFC31D71BB2AF405C16AFDDDCC?sequence=1. Acesso em: 25 fev. 2025.
FRANCE PRESSE. Três anos após naufrágio, balsa é resgatada na Coreia do Sul:
Naufrágio provocou a morte de 304 pessoas, em sua grande maioria estudantes. G1 Globo, Mundo. 23 mar. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/tres-anos-apos-naufragio-balsa-e-resgatada-na-coreia-do-sul.ghtml. Acesso em: 20 fev. 2025.
RHEE, Suk Koo. Korea: Neoliberalism, State Developmentalism, and People Power. Yonsei University. Situations 1.2, 2018.
SUH, Jae-jung. The Failure of the South Korean National Security State: The Sewol
Tragedy in the Age of Neoliberalism 韓国国防国家体制の 破綻 セウォル号
の悲劇、新自由主義時代の産物. The Asia-Pacific Journal | Japan Focus, Volume 12 | Issue 40 | Number 1 | Article ID 4195 | Oct 02, 2014.
YOU, Jong-sung; PARK, Youn Min. The Legacies of State Corporatism in Korea:
Regulatory Capture in the Sewol Ferry Tragedy. Journal of East Asian Studies 17, 2017. pp 95-118. Disponível em: https://openresearch-repository.anu.edu.au/server/api/core/bitstreams/01692f2b-e9b8-42b9-a618-50a0892705eb/content. Acesso em 25 fev. 2025.
SOBRE OS AUTORES
Guilherme Henrique Ferreira Povoa
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia, integrante da Curadoria de Estudos Coreanos (CEÁSIA/CEA/UFPE). Possui interesse em Estudos Asiáticos com ênfase em Coreias, Segurança Internacional, Política Externa e Comércio Exterior. E-mail: guilhermeferreiradesouza135@gmail.com
Maria Clara Lima Abrão
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia, integrante da Curadoria de Estudos Coreanos (CEÁSIA/CEA/UFPE) e do Núcleo de Pesquisa em Segurança Internacional e Estudos Estratégicos (NUPSIEE-UFU). Se interessa por Estudos Asiáticos com ênfase em Coreias, Segurança Internacional, cultura e identidade. E-mail: mcl.abrao@gmail.com
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