
Entre o Horror e a História: A Criatura de Gyeongseong
por Guilherme Henrique Ferreira Póvoa e
Maria Clara Lima Abrão
Imagem:/https://ww12.quilombogeek.com/2024/01/13/a-criatura-de-gyeongseong-usa-o-horror-para-denunciar-as-atrocidades-cometidas-durante-a-invasao-japonesa-na-coreia-do-sul/?usid=20&utid=15427997428.
Entre 2023 e 2024, dezessete episódios do thriller sul-coreano “A Criatura de Gyeongseong” (em coreano, 경성크리처) repercutiram, para além do drama e do terror, o contexto e a história da Coreia e o árduo período de colonização japonesa. Criada por Kang Eun-kyung, renomada pela autoria de “Dr. Romântico” e “What Happens To My Family?”, e dirigida por Chung Dong-yoon, a série foi dividida em duas partes estratégicas para a trama e se desdobra em Gyeongseung, antiga Seul, durante a sombria primavera de 1945.
A história do K-drama gira em torno de Jang Tae-sang, um influente proprietário de uma casa de penhores, e Yoon Chae-ok, uma detetive da Manchúria, que relutantemente se unem na procura de duas pessoas desaparecidas e eventualmente chegam ao subsolo do Hospital Ongseong, local em que experimentos com humanos eram conduzidos. Neste ambiente, japoneses buscavam desenvolver um monstro (ou criatura) poderoso e, para tal, torturavam diversas pessoas, remontando a práticas coloniais especialmente relacionadas à Unidade 731 (Departamento de Prevenção de Epidemias e Abastecimento de Água). Os protagonistas, neste contexto, se aliam para impedir que tal terror se perpetue.
Embora a trama se refira a eventos verídicos desse período, o K-drama conta com o
elemento de uma “criatura” ficcional fazendo alusão a antigos experimentos realizados pelo Japão em cidadãos coreanos, chineses e mongóis no período colonial conhecido como Mobilização Forçada (強制動員), perdurante entre 1931 e 1945. Neste contexto, Tae-sang (interpretado por Park Seo-jun) e Chae-ok (vivida por Han So-hee) enfrentam uma luta desesperada contra a criação de uma terrível criatura, resultado da ganância humana, onde cientistas buscavam novas armas para assegurar a vitória e o controle absoluto no cenário de guerra no qual a Coreia estava inserida (Afonso, 2023).
O período de Mobilização Forçada impactou profundamente a Coreia e a sua memória em relação à colonização (Hwang, 2021), visto que foi marcado por diversos crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, tais como o caso das “mulheres de conforto”. Houve escravidão, especialmente em locais de armamentos militares ou produções de alimentos, alistamento obrigatório e compulsório feminino e masculino (Guilherme, 2023), e a política “Um Corpo Japão-Coreia” (1938), que visava o apagamento e o extermínio cultural coreano (Rodrigues, 2021). Ao retratar este período caliginoso, a série enfatiza os experimentos cruéis realizados por cientistas militares japoneses em prisioneiros coreanos no Departamento de Prevenção de Epidemias e Abastecimento de Água (reconhecido como Unidade 731), responsável pela morte de aproximadamente 3.000 pessoas na sede da Manchúria, além da tortura e experimentos com aproximadamente outras 250.000 vítimas entre 1939 e 1945. Os prisioneiros eram submetidos a procedimentos como vivissecção ao vivo, congelamento e experimentos com doenças sob o pretexto de avanço na pesquisa médica, militar e biológica japonesa (Dybbro, 2017).
A Unidade 731 era somente um dos vários Departamentos de Prevenção de Epidemias existentes, com pelo menos cinco outras instalações permanentes na China, Japão e Cingapura, além de outras 18 espalhadas pelo Império Japonês. No entanto, em agosto de 1945, com a rendição do Japão, o líder da Unidade 731, General Shiro Ishii, ordenou a destruição das evidências, matando e enterrando os prisioneiros restantes, liberando animais infectados e demolindo instalações (Dybbro, 2017). Antigos membros da Unidade 731, incluindo médicos, enfermeiros e assistentes, admitiram a participação nos experimentos e na destruição das evidências ao fim da guerra. No entanto, até hoje, o governo japonês não assumiu responsabilidade pelos horrores cometidos, e nenhuma ação judicial movida por famílias chinesas afetadas pelos experimentos foi respondida pelo Japão (Dybbro, 2017).
Assim, o K-Drama “A Criatura de Gyeongseong” aborda indiretamente os horrores cometidos na Unidade 731 e as torturas e experimentos conduzidos pelo governo japonês durante a Mobilização Forçada. Ao remeter às atrocidades cometidas tanto na península coreana quanto na Manchúria, ressalta-se a importância que esta história recente coreana possui no senso de identidade e nacionalidade, de modo que não se trata somente do passado, mas também do presente, uma vez que não houve medidas de reparação histórica pelo governo japonês (Dybbro, 2017). Desta forma, por esforço coreano, constroem-se estátuas e monumentos dedicados às vítimas, bem como se produzem séries, tal como “A Criatura de Gyeongseong”, a fim de reforçar a necessidade de memória histórica e reconhecimento dos horrores cometidos.
REFERÊNCIAS
AFONSO, L. A Criatura de Gyeongseong é baseada em fatos reais?. 26 dez 2023.
Disponível em: https://rd1.com.br/criatura-de-gyeongseong-nova-serie-coreana-da-netflix-e-baseada-em-fatos-reais/. Acesso em: 19 fev. 2025.
ALEXANDER, Rafa. A Criatura De Gyeongseong: Final Explicado. 2024 | Chae-ok
Morre? Disponível em: https://recortelirico.com.br/2024/rafaalexander/a-criatura-de-
gyeongseong-2/. Acesso em: 20 fev. 2025.
DYBBRO, Danielle. Unit 731 – The Secret Japanese Military Testing Facility for
Biological Warfare. Pacific atrocities Education (PEA). 6/2/2017. Disponível em:
https://www.pacificatrocities.org/blog/unit-731-the-secret-japanese-military-testing-facility-for-biological-warfare? gad_source=1&gclid=CjwKCAiAn9a9BhBtEiwAbKg6folwZ2tHxpjEPpd4C_vaMj2
Gj2vephxiQUW9juwf79QciVefwNpVcxoCYDsQAvD_BwE. Acesso em: 19 fev. 2025.
GUILHERME, Isabella Rodrigues. Nacionalismo Moderado: O Movimento Cultural na Península da Coreia Durante a Ocupação Japonesa (1910-1954). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2023.
HWANG, Kyung Moon. A History of Korea. Macmillan Essential Histories. London: Red
Globe Press, 2021.
RODRIGUES, Alicia. A questão da escravidão sexual militar japonesa antes e durante a Segunda Guerra Mundial: Intersecção entre poder colonial, gênero e classe. Rio de Janeiro, XXVI Encontro Nacional de Economia Política, p. 1-16, jun. 2021.
SOBRE OS AUTORES
Guilherme Henrique Ferreira Povoa
Graduando em Relações Internacionais pela UFU, integrante da Curadoria de Estudos
Coreanos (CEÁSIA/CEA/UFPE). Possui interesse em Estudos Asiáticos com ênfase em Coreias, Segurança Internacional, Política Externa e Comércio Exterior. E-mail:
guilhermeferreiradesouza135@gmail.com
Maria Clara Lima Abrão
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia, integrante da Curadoria de Estudos Coreanos (CEÁSIA/CEA/UFPE) e do Núcleo de Pesquisa em Segurança Internacional e Estudos Estratégicos (NUPSIEE-UFU). Se interessa por Estudos Asiáticos com ênfase em Coreias, Segurança Internacional, cultura e identidade. E-mail: mcl.abrao@gmail.com
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