ARTIGO DE OPINIÃO | Os abusos no ambiente de trabalho e suas representações em obras sul-coreanas

ARTIGO DE OPINIÃO | Os abusos no ambiente de trabalho e suas representações em obras sul-coreanas

É atribuída a Confúcio a fala: “Escolha um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”, apesar da influência do pensador na Coreia do Sul, os problemas no ambiente de trabalho são tópicos que chamam atenção por “chocar” a todos no país. Um dos motivos é o abuso de poder e os diversos tipos de assédio que passaram a ser retratados em obras de diferentes formatos para alertar sobre esse problema social.

Segundo Amsden (1992), o desenvolvimento financeiro sul-coreano ocorreu em um ritmo acelerado quando comparado a outros países, isto apesar do lugar passar por uma colonização tardia e diversas outras questões históricas que aconteceram posteriormente, mas ainda assim conseguiu reerguer-se e tornar-se uma potência mundial em um período de tempo relativamente curto, para Jones e Kim (2014) esse acontecimento foi possível com o auxílio de incentivos e medidas do governo ao longo dos anos.

Esse crescimento rápido da Coreia do Sul, no entanto, não garantiu que o ambiente de trabalho fosse um campo de flores, pois ali também acontece, como em qualquer lugar, casos de competitividade acirrada e abusos contra funcionários, o que pode causar sérios danos aos trabalhadores. Sobre o assédio moral, Hyrigoyen (2000) diz que é toda ação abusiva que é manifestada por comportamentos, gestos e palavras que atingem a integridade da pessoa, o que pode afetar a vida profissional e até mesmo a pessoal, isto que notamos no drama Médicos em colapso e no conto Obrigado, seu Guaxinim.

É interessante lembrarmos que essas situações não são representado em vão nas produções, Antonio Candido afirma que “fatores sociais atuam concretamente nas artes” (Candido, 2006, p. 47), assim, devido à frequência desses casos, as obras artísticas passaram a trazer a problemática a público, afinal “a arte imita a vida”, não é mesmo?, Dessa forma, as dificuldades laborais passam a ser vistas tanto na literatura quantos nos dramas.

Um exemplo disto é o K-drama Médicos em colapso, disponível na Netflix. A história aparenta ser uma “mera” comédia-romântica, mas vai além da expectativa quando nela encontramos uma crítica ao ambiente de trabalho “tóxico” que por meio das cobranças constantes, abuso de poder, longo tempo de trabalho e competição entre colegas afeta a qualidade de vida da protagonista Kang Hang Neul, uma médica que descobre a depressão por conta do que “vivia”, enquanto tentava sobreviver no seu emprego.

Diversas pesquisas realizadas, inclusive na própria Coreia do Sul, dizem que o ambiente de trabalho pode influenciar na saúde mental do empregado como vemos nos estudos de Sangsoo Han et al. (2021) e Yoo-Jean Song e Yun-Chul Hong (2021) alertam como essa experiência pode contribuir para casos de depressão (como era o caso da protagonista) e Síndrome de Burnout.

Figura 1 – Kang Hang Neul repreendida por não cumprir a função do seu superior

Fonte: Elaborada pela autora (2024)

Na cena acima, vemos uma das tantas humilhações realizadas pelos “sunbaes” (os superiores) no hospital onde Kang Han Neul trabalha, que após jogar uma pilha de papéis nela, crítica e reprime a funcionária por não fazer uma função que era dele. Por conta do respeito que a questão cultural da hierarquia impõe, a protagonista é obrigada a ficar em silêncio, sofrer física e emocionalmente em muitos episódios enquanto é inferiorizada enquanto ainda tem seu trabalho descreditado (para não dizer roubado) por eles, que o utilizam para crescer naquele ambiente.

Outro espaço artístico que traz essa problemática é a literatura, e das tantas obras sul-coreanas traduzidas, podemos observar o conto Obrigado, Seu Guaxinim que se encontra no livro Castella, do escritor Park Min-Gyu. O texto traz uma grande crítica social de modo que pode incomodar o leitor pelos acontecimentos que retratam o assédio na empresa (alerta de gatilho!).

Figura 2 – Capa do livro Castella

 Fonte: Site Martin Claret (2024)

https://www.martinclaret.com.br/livro/castella/

Vemos desde o início da história as colocações do narrador-personagem sobre a competitividade que vive para superar outros estagiários e conseguir uma vaga na empresa onde quer ser contratado. Ele mostra que quem deseja permanecer no ambiente corporativo é obrigado a submeter-se a diversos trabalhos, xingamentos e humilhações que aconteciam principalmente por seus superiores que tinham o poder nas mãos.

Em uma das passagens do texto, o narrador fala sobre o assédio que vive e o fato de deixar isso acontecer “por medo desse poder […] No fim, essa era a raiz do meu estresse” (Park, 2021, p. 60). Notamos neste e em diversos outros trechos como as condições abusivas que era obrigado a enfrentar refletem no emocional do funcionário que se sente humilhado e sujo por causa do que passa para conseguir a disputada vaga naquele espaço carregado de aflição.

A LSA (Labor Standards Act) tem leis que visam proteger os empregados de assédio e garantir seus direitos, porém, como as penas não são claras, muitas denúncias sequer são feitas por medo. As regras permanecem, às vezes, apenas no papel. Então, vemos a necessidade dessas produções que trazem à tona o problema que precisa ser mostrado, apesar de ser algo pesado de se ver, porém, é mais difícil ainda para quem aguenta em silêncio com medo de nunca ser ouvido e resgatado desse teste de sobrevivência em forma de emprego, bem diferente do que a possível fala de Confúcio idealizava.


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Referências


AMSDEN, Alice H. Asia’s next giant: South Korea and late industrialization. 1 ed. Nova York: Oxford University Press, 1992.


CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

HAN, Sangsoo et al. Working hours are closely associated with depressive mood and suicidal ideation in Korean adults: a nationwide cross-sectional study. Scientific Reports, Estados Unidos, n. 11, p. 1-9, 2021. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8630033/>. Acesso em 30 de abr. de 2024.

HYRIGOYEN, MF. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

JONES, Randall S.; KIM, Myungkyoo. Fostering a creative economy to drive korean grouth. N. 1152. Paris: OECD, 2014. Disponível em: <https://www.oecd-ilibrary.org/economics/fostering-a-creative-economy-to-drive-korean-growth_5jz0wh8xkrf6-en>. Acesso em: 03 de maio de 2024.

Korea Legislation Research Institute. Labor Standards Act. 2021. Disponível em: < https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?hseq=59932&lang=ENG>. Acesso em: 03 de maio de 2024.

MARTIN CLARET. Castella. Disponível em: https://www.martinclaret.com.br/livro/castella/. Acesso em: 10 de maio de 2024.

NAM, S. Park Shin Hye Is A Workaholic Doctor Experiencing Burnout In “Doctor Slum”. Soompi. Disponível em: https://www.soompi.com/article/1636436wpp/park-shin-hye-is-a-workaholic-doctor-experiencing-burnout-in-doctor-slump. Acesso em: 20 de maio de 2024.

PARK, Min-Gyu. Castella. Tradução: Nick Farewell. São Paulo: Martin Claret, 2021.

Médicos em Colapso. Direção: Oh Hyun-Jong . Produção: Han Suk-Won; Hwang Gi-Yeong. Coreia do Sul: JTBC, 2024. 16 episódios. Disponível em: < https://www.netflix.com/br/title/81697985?s=a&trkid=13747225&trg=cp&vlang=pt&clip=81753293>. Acesso em: 22 de abr. de 2024.

SONG, Yoo-Jean; LEE, Yun-Suk. Work hours, work schedules, and subjective well-being in Korea. International Sociology, Estados Unidos, n. 36, p. 25-48, 2021. Disponível em: 

Disponível em: < https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0268580920949724> . Acesso em: 04 de abri. de 2024.



SOBRE O AUTOR


Alanessa Nikole Carvalho da Silva

Mestranda em Teoria Literária na Universidade Estadual do Maranhão, graduada em Letras-Literatura de Língua Portuguesa (UEMA) e pesquisadora associada da Curadoria de Estudos Coreanos (CEÁSIA-UFPE). Tem interesse na área da literatura, audiovisual e estudos coreanos.  E-mail: alanessanc@gmail.com.


 

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