ARTIGO DE OPINIÃO | Movimento Feminista e Literatura na Coreia do Sul: uma parceria promissora

ARTIGO DE OPINIÃO | Movimento Feminista e Literatura na Coreia do Sul: uma parceria promissora

Autora: Suéllen Gentil
E-mail: suellen.gentil@gmail.com
Imagem: Mulher Lendo (독서하는 여인) de Yoon Deok-hee. 

Ao ser questionada sobre a força da literatura para reparar injustiças, a escritora Conceição Evaristo disse: “A literatura não é um texto histórico, ela não é um texto religioso, não é um texto sociológico, não é um texto pedagógico. Então, por não ser isso tudo, o texto literário tem essa capacidade de transitar aqui e ali. […] E mais do que isso, tem a capacidade de convocar as pessoas, de falar na sensibilidade das pessoas”. 

Sendo a literatura capaz de elucidar, provocar, incomodar, despertar à consciência e fomentar debates, é possível admitir que ela pode desempenhar um papel importante no engajamento popular em questões sociais. E um exemplo expressivo que vem sendo discutido na contemporaneidade é a participação da literatura sul-coreana no crescimento e fortalecimento do movimento feminista na Coreia do Sul.

A organização das mulheres como movimento feminino na Coreia do Sul vem de uma longa data, mas começa a ter os moldes feministas  que conhecemos hoje nas décadas de 1980 e 1990, durante o movimento de democratização do país. As mulheres começaram a se organizar e mobilizar politicamente em torno de questões como discriminação de gênero, violência sexual e desigualdade no mercado de trabalho e na educação. Desde então, o movimento feminista na Coreia do Sul tem crescido e se desenvolvido, com campanhas importantes como a abolição do sistema hoju,  o movimento #MeToo e protestos contra a pornografia de câmeras escondidas. Sobre isso, Silva (2022, p. 24), conclui que:


Considerando, então, que o movimento feminino sul-coreano enquanto mobilização sócio-política e ideológica que, em termos políticos, sociais e econômicos, visa a igualdade entre homens e mulheres, ele contribui para o impulsionamento da participação de mulheres nas mais diversas esferas, públicas e privada, de forma que o legado de suas ações e intervenções na estrutura política e social sul-coreana ressoa ainda fortemente nos dias atuais.


Esse movimento político foi acompanhado paralelamente por um movimento crescente da participação das mulheres na produção literária do país. Segundo a pesquisadora Helen Koh (2002, p. 35), “escritoras profissionais surgiram na Coreia na virada do século, mas somente a partir do final da década de 1960 elas cresceram em visibilidade e número”. O reconhecimento desse trabalho por meio de premiações, aliado à tradução, trouxe notoriedade mundial para algumas autoras nas últimas décadas. A exemplo podemos citar Gong Ji-young (Horas Felizes), Han Kang (A Vegetariana), Shin Kyung-sook (Por favor, cuide da Mamãe) e Cho Nam-joo (Kim Jiyoung, nascida em 1982).

Essa participação não está desvinculada de uma ação política, pois as bases confucionistas do país relegam à mulher posições relevantes na esfera pública, gerando resistência a uma voz feminina ativa nos espaços de poder, como complementa Helen Koh (2002, p. 35) ao dizer que:

 

De fato, o número de mulheres escrevendo profissionalmente aumentou tão rapidamente que, na década de 1990, críticos literários e escritores conservadores masculinos estavam reclamando que a literatura coreana estava inundada de jovens mulheres ansiosas para publicar. Essa queixa reflete um cenário literário em mudança na qual as mulheres, que haviam sido marginalizadas pela cena literária, assim como em outros fóruns públicos, tornaram-se altamente ativas. O direito de publicar e se engajar em críticas sociais são pilares essenciais da esfera pública e, na Coreia, como em outros lugares, há muito tempo era o domínio exclusivo de escritores, poetas e críticos masculinos. Para entender o significado de as mulheres poderem participar plenamente da literatura coreana, primeiro devemos entender o que significa para as mulheres escreverem. 

 


E não seria o ato da escrita literária também um ato político? A ocupação de um espaço de poder? Escrever literatura, para além de contar histórias, é uma forma de voz ativa. As escritoras moldam realidades alternativas, questionam normas sociais e políticas, e trazem à tona existências marginalizadas. Ao narrar experiências e perspectivas únicas, ficcionadas ou não, também se reivindica sua presença na sociedade. A literatura se torna, assim, um meio para resistir, questionar e reimaginar o mundo ao nosso redor.

Como exemplo, podemos pensar no já mencionado livro “Kim Jiyoung, nascida em 1982”, de Cho Nam-joo. Com mais de 1 milhão de cópias vendidas, transcende a fronteira entre realidade e ficção ao narrar a vida de uma única mulher, Kim Jiyoung, enquanto retrata a experiência compartilhada por muitas mulheres do país e, em certos aspectos, do mundo. Inspirada em experiências pessoais, a autora Cho Nam-joo utiliza-se de dados de pesquisa embutidos na narrativa para ilustrar a jornada não apenas da personagem principal, mas de milhões de mulheres. O livro destaca a preferência cultural pelos homens desde a infância, e também aborda questões como pressões familiares para gerar filhos homens, discriminação de gênero no mercado de trabalho e o peso das expectativas sociais sobre as mulheres. 

Cho Nam-joo, ao narrar uma jornada individual de uma única personagem, dá voz a milhões, denunciando as formas patriarcais da sociedade sul-coreana e suas consequências na vida das mulheres. O livro vem sendo objeto de diversos estudos (Amalia e Abdin, 2022; Jung, 2021; Baruna e Lestari, 2022; Khasanah e Candraningrum, 2021; entre outros), fomentando assim debate dentro e fora da academia, visto que são facilmente encontradas também matérias jornalísticas, entrevistas, resenhas e textos opinativos sobre o livro e a autora.

Poderíamos pensar nos efeitos que essa e outras leituras de autoras sul-coreanas tem tido na ampliação do engajamento popular no movimento feminista na Coreia do Sul? Resgatando a fala de Conceição Evaristo, se literatura “tem a capacidade de convocar as pessoas, de falar na sensibilidade das pessoas”, não seria essa uma parceria promissora para o país? Não tenho aqui a ambição de responder uma pergunta tão complexa e ainda pouquíssimo estudada, mas fomentar a reflexão sobre os efeitos e possibilidades pujantes dessa relação, visto que literatura e sociedade são indissociáveis.

É fato que o movimento feminista sul-coreano, assim como no restante do mundo, ainda possui um longo caminho a ser percorrido. Mas, é salutar ver os avanços que foram feitos e compreender os mecanismos que contribuem com essa luta, especialmente aqueles muitas vezes ignorados, como a literatura e a arte no geral. Por meio da sensibilização ficcional e de uma escrita que sangra vivências, é possível que mais e mais pessoas se sintam motivadas ao movimento reivindicatório como tomada de decisão.

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Notas de rodapé: 

 

¹ O termo democratização aqui é usado para facilitar a compreensão dos eventos que se sucederam após a queda do regime autoritário de Chun Doo-hwan, conforme material educacional disponível no site Museu Nacional de História Coreana Contemporânea (https://www.much.go.kr/en/contents.do?fid=03&cid=039) que faz uso do termo. No entanto, não é a intenção invalidar autores que preferem falar em redemocratização, visto que a existência de regimes autoritários não deveria invisibilizar gestões democráticas que vieram antes.

 

² Até a sua revisão em março de 2005, o Código Civil da Coreia do Sul empregava o sistema hoju, também conhecido como “Chefe de Familia”, que conferia poderes e privilégios ao hoju correspondente de cada unidade familiar e estava ancorada na predominância patriarcal que permeava a estrutura doméstica. (Jinsu, 2005, р. 195).

³ Tradução minha do trecho “Professional women writers appeared in Korea at the turn of the century, but only since the late 1960s have they noticeably grown in visibility and numbers.”

⁴ Traduzido por Maryanne Linz e publicado em 2017 pela editora Record.

⁵ Traduzido, primeiramente, por Yun Jung Im Park e publicado em 2013 pela editora Devir. Em 2018, uma segunda tradução, feita por Jae Hyung Woo, foi publicada pela editora Todavia.

⁶ Traduzido por Flávia Rössler e publicado pela editora Intrínseca em 2012.

⁷ Traduzido por Alessandra Esteche e publicado pela editora Intrínseca em 2022.

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Referências:

 

JINSU, Y. Tradição e Constituição no Contexto do Direito da Família Coreano. Jornal de Direito Coreano, 2005, v.5 n.1, pp.

KIM, S.; KIM, K. Integração de gênero e a institucionalização do movimento de mulheres na Coreia do Sul. Fórum Internacional de Estudos da Mulher. Pérgamo, 2011. p. 390-400.

Koh, H. Mulheres e Literatura Coreana. Conhecendo a Coreia: Livro de recursos para educadores do ensino fundamental e médio. A Sociedade Coreana. Nova York, 2002. pp.35-41.

SANTANA, T.; ZAPPAROLI, A. CONCEIÇÃO EVARISTO – “A escrevivência serve também para as pessoas pensarem”. 2020. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem/. Acesso em: 29 abr. 2023.

SILVA, AM Igualdade de gênero e democracia: A Coreia do Sul e o movimento feminino. André Bueno. (Org.). Novos Estudos em Extremo Oriente. 1ed. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2022, v. 3-182.

SHIN, Ki-young. Beyond# WithYou: A nova geração de feministas e o movimento#MeToo na Coreia do Sul. Política e Gênero, v. 17, n. 3, 2021, pág. 507-513.

 

Mini bio: Suéllen Gentil é mestranda no Programa de Pós Graduação em Letras, na linha de pesquisa de Tradução e Cultura, da Universidade Federal da Paraíba [UFPE] e pesquisadora associada da Coordenadoria de Estudos Asiáticos [CEÁSIA], vinculada ao Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco [CEA-UFPE].

 

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