NOTA DE ENDOSSO | Manifesto contra o Orientalismo da Associação Brasileira dos Coreanos
Maria Clara Moraes [clarinhajv@gmail.com]
Vitória Ferreira Doretto [vickydoretto@gmail.com]
Imagem do acervo das autoras
Na última segunda-feira, 23 de outubro, a Academia Brasileira de Letras (ABL) postou em sua conta no instagram a inclusão da palavra “Dorama” na nossa língua portuguesa. O texto do verbete foi extraído da postagem na rede social e no site da Academia e está transcrito neste documento de maneira que possamos acompanhar alguns pontos de discussão.
“Dorama s.m.
Obra audiovisual de ficção em formato de série, produzida no leste e sudeste da Ásia, de gêneros e temas diversos, em geral com elenco local e no idioma do país de origem.
[Os doramas foram criados no Japão na década de 1950 e se expandiram para outros países asiáticos, adquirindo características e marcas culturais próprias de cada território. Para identificar o país de origem, também são usadas denominações específicas, como, por exemplo, os estrangeirismos da língua inglesa J-drama para os doramas japoneses, K-drama para os coreanos, C-drama para os chineses.]”
A palavra “Dorama” é um termo que advém da adaptação da palavra “Drama” em língua inglesa para a língua japonesa e está atrelada às obras audiovisuais em formato de série que são produzidas no Japão. Contudo, a referência utilizada pela ABL foi o dicionário de Oxford para o termo “K-drama”. Este, sim, se refere às obras audiovisuais sul-coreanas.
Dessa maneira, esse post gerou uma comoção tanto dos pesquisadores de Coreia do Sul quanto da comunidade coreana aqui no Brasil. Dois pontos são importantes destacar no texto da ABL:
i. “obra audiovisual de ficção em formato de série, produzida no leste e sudeste da Ásia…” Aqui há um reducionismo a tudo o que é produzido nos mais diversos países da região a uma palavra derivada do japonês. Apesar de serem produções ficcionais em formato de série, possuem características narrativas e estilísticas distintas.
ii. “os doramas foram criados no Japão na década de 1950…” Nesse momento, há novamente uma centralidade no Japão, deixando claro que o estilo surgiu lá e se disseminou. Sendo assim, ocorre um apagamento histórico e social das outras sociedades que também desenvolveram dramas em formato de série na região supracitada. Além do que já foi citado, a história colonial do Japão na Ásia é um ponto sensível que também foi desconsiderado pela ABL ao reduzir toda produção ao Japão.
Após a publicação do verbete, no dia 27 de outubro, pesquisadores coreanos assinaram um manifesto contra o orientalismo da Associação Brasileira dos Coreanos sobre a definição da ABL de “Dorama”. Nesse manifesto, o presidente da associação Augusto Kwon e as professoras pesquisadoras Dra. Yun Jung Im e Dra. Daniela Mazur explicam porque o uso de “dorama” é uma estereotipação do consumo de produções asiáticas — fato que não ocorre, por exemplo, com produções europeias —, além do apagamento das diversas perspectivas culturais e da grande carga imperialista do passado recente da região, e ainda questionam o por quê do Brasil fazer um movimento contrário ao que tem acontecido em outros países e planificar, generalizar diferentes expressões culturais.
Em resposta às críticas, a ABL, através de Ricardo Cavaliere, membro da comissão de lexicografia da Academia, apontou que a inclusão vocabular se dá a partir da “maneira como a comunidade linguística (neste caso, a brasileira) faz uso de uma palavra” e que “não é incomum que, uma vez incorporada a outra língua, a palavra ganhe vida própria, rapidamente se distanciando de seu sentido ou de seu emprego original”. Com essas afirmações, Caveliere indica que a comunidade autointitulada “dorameira” já usa o termo, não considerando se de forma equivocada ou não, mas também desconsidera que se basear no uso das palavras em seus “contextos reais” pode ser uma forma de disseminar e reforçar estereótipos e preconceitos.
Podemos notar que o posicionamento da ABL vai de encontro a todo o esforço sul-coreano em reafirmar sua cultura e seus valores. Ao que concerne às produções televisivas, o Centro Cultural Coreano já havia produzido um conteúdo sobre “o uso do termo correto para novelas coreanas” em idos de 2022, demonstrando um cuidado com a maneira como os brasileiros estavam recebendo as suas produções e produzindo conteúdos sobre elas. No texto do Centro Cultural, eles indicam a utilização de “drama” ou ‘K-drama”, com a já estabelecida designação distintiva “K” quando da menção dos “K content” (K-pop, K-beauty, K-food, K-lit…). A ABL, por se tratar de uma instituição com influência no português e na cultura brasileira, deveria ter um cuidado maior com a pesquisa e com a apresentação dos novos verbetes. Portanto, ao analisar a postagem, percebemos as incoerências apresentadas pela Academia, o que nos levou a endossar o movimento da comunidade rechaçando a definição orientalista e simplista utilizada no verbete.
O objetivo da ABL é o “cultivo da língua e da literatura nacional” (como disposto em seu site) e a Academia tem a força da consagração de termos usados no cotidiano do país — seu papel como agente de estabilização de léxico é inegável. Por isso, a inclusão de “dorama” como um termo guarda-chuva para diversas produções de características e funcionamentos distintos reforça uma abordagem preconceituosa. Por exemplo, podemos utilizar uma palavra específica para falar de “dizis”, as novelas turcas, por que também não podemos ter termos específicos para as produções do leste e sudeste asiático — “dorama” para as japonesas, “K-drama” para as coreanas, “C-drama” para as chinesas, “P-drama” para as filipinas e assim por diante? Por que um termo só para tudo?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. A Nova Palavra é “dorama”. Instagram, 23 out. 2023. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cyv7u0Jh5lq.
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Dorama. 2023. Disponível em: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/dorama.
CENTRO Cultural Coreano. [Aviso sobre o uso do termo correto para novelas coreanas]. Avisos, 14 abr. 2022. Disponível em: https://brazil.korean-culture.org/pt/436/board/180/read/114892
CENTRO Cultural Coreano. Você sabia? Drama. Instagram, 20 abr. 2022. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CclqmZuMsEJ.
QUEIROZ, Julia. Pesquisadores coreanos assinam manifesto contra definição da ABL de ‘dorama’; academia se defende. Entre Telas, Terra, 27 out. 2023. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/series/pesquisadores-coreanos-assinammanifesto-contra-definicao-da-abl-de-dorama-academia-se-defende,360d3f7d05df847afbba5b21e4f49709aq4ql4o3.html.
MANIFESTO contra o orientalismo da Associação Brasileira dos Coreanos. Metagaláxia, 27 out. 2023. Disponível em: https://metagalaxia.com.br/cultura/manifesto-contra-o-orientalismo-da-associacao-brasileira-dos-coreanos/.
MAZUR, Daniela. A Indústria Televisiva Sul-Coreana no Contexto Global. Ação Midiática –Estudos em Comunicação Sociedade e Cultura, n. 22, p. 172- 191, 2021. DOI:10.5380/2238-0701.2021n22.09
OXFORD ENGLISH DICTIONARY. K-drama. Disponível em: https://www.oed.com/search/dictionary/?scope=Entries&q=k-drama&tl=true.
RIBEIRO, Pedro Henrique. Associação Brasileira dos Coreanos critica ABL por definição do termo dorama. Omelete, 27 out. 2023. Disponível em: https://www.omelete.com.br/seriestv/dorama-abl-polemi
Nenhum comentário