O Império do Sol Nascente: Estado e Industrialização na Era Meiji

O Império do Sol Nascente: Estado e Industrialização na Era Meiji

Gisele Yamauchi1

Maurício Luiz Borges Ramos Dias2

Thomas Dias Placido3

Revisão especializada por: Angélica Alencar e Paula Michima.

O Japão foi pouco tocado pelo Ocidente durante o período de expansão ultramarina europeia, uma vez que passava por uma rigorosa política isolacionista (“país fechado”, do japonês “sakoku”) iniciada no século XVII até metade do século XIX. Apesar disso, o país desenvolveu um sistema econômico próprio pautado na revolução das relações de produção agrícola através da reforma agrária e na existência de oficinas e manufaturas estatais, possibilitando o esforço modernizante. Nesse sentido, o Estado japonês teve tempo para se reorganizar e se preparar, como o fez durante a Era Meiji (1868-1912), rompendo com a antiga ordem do xogunato da Era Tokugawa (1603-1868)4

Com o intuito fazer frente às expansões imperialistas das potências ocidentais5, iniciou-se em 1868 a Restauração Meiji, símbolo da criação das bases do poder nacional capaz de preservar a independência do país face à ascensão do imperialismo. Como resultado, esse processo foi acompanhado pela centralização do poder político nas mãos do imperador, industrialização e, também, pelo fortalecimento das capacidades militares do Japão, sendo importante destacar o lema “fukoku kyōhei” (“enriquecer a nação, fortalecer o exército”) que já demonstrava interligações entre economia e militarização japonesa (HENSHALL, 2004). Logo, não se pode compreender o desabrochar do progresso industrial do Japão sem analisar dimensões econômicas relacionadas aos avanços militares e expansionismo territorial japonês no Leste Asiático — temas que, em poucas páginas, nos esforçamos para elucidar aos nossos leitores.   

A partir da guinada resultante do comportamento reativo às ameaças externas à sua soberania e posição geográfica dominante, traçaram-se os caminhos em direção ao despontamento da civilização industrial nipônica. De acordo com a análise conjuntural de Furtado (1978), a aceleração da difusão da civilização industrial tratava-se de não apenas absorver técnicas e instrumentais isolados, mas assimilar o sistema de civilização industrial ocidental em função de um projeto de consolidação nacional, compatibilizando o novo aparelho produtivo e suas técnicas de produção à estrutura social japonesa sem que houvesse uma ruptura do quadro tradicional de dominação6. Como observado, o controle estatal sobre o processo de modernização no Japão derivou da conscientização das elites do atraso das forças produtivas do país em relação às potências ocidentais (Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha) (VIEIRA; OURIQUES; SANTOS, 2023). 

Assim surgiria, de forma incipiente, o capitalismo industrial nativo do Japão, implantando-se no arquipélago nipônico “na ausência das estruturas sociais produzidas na Europa pelo prolongado processo da revolução burguesa” (FURTADO, 1978, p. 43). Dessa forma, o salto industrialista japonês foi sustentado principalmente por empresas nacionais estatais com tecnologia autóctone que detinham o know-how manufatureiro, ancoradas em uma indústria de mão-de-obra intensiva (VIEIRA; OURIQUES; SANTOS, 2023). A mobilização massiva do Estado e do setor público possibilitou a aquisição de maquinário e atenuação de gargalos logísticos ao canalizar o investimento em infraestrutura, uma vez que esses dois atores representavam mais da metade da formação bruta de capital fixo do período; consequentemente, através de seu competitivo setor têxtil, a mobilização desses recursos permitiu ao país asiático superar o desequilíbrio na sua balança de pagamentos e adquirir as divisas essenciais para a importação de tecnologia mecanizada europeia, retroalimentando o despontar de uma política industrial fundamentada em mudanças imperativas na estrutura econômica (MOURA, 2021). 

Mediante uma aliança sólida entre as classes economicamente fortes e o aparato estatal, os grandes proprietários de terras foram recompensados pela perda de renda em suas terras7 em forma de participação nas manufaturas estatais ou em ações nos bancos perante incentivos do Estado. Por consequência, havia um claro entrosamento financeiro entre as empresas e  simbiose dos grandes grupos nacionais8 com o Estado, onde a acumulação foi intensificada, na fase inicial, pela transformação de parte dos bens de consumo em bens de capital mediante o comércio internacional (FURTADO, 1978). Esse vínculo construído sob a tutela estatal ativamente fomentou uma classe burguesa embrionária por meio de subsídios, fazendo com que as “casas mercantes em ascensão assumissem [a preços fortemente subsidiados] empresas lucrativas de grande escala, formando os zaibatsu [monopólios financeiros que se transformaram em conglomerados econômicos]. Deste modo, ficam claros laços cordiais construídos entre as grandes empresas japonesas e o Estado desde o início” (SO; CHIU, 1995, p. 74-75 apud MOURA, 2021, tradução nossa).

Em suma, o projeto industrializante racionalizado pelo Estado tornou a “empresa capitalista japonesa uma projeção dos grupos sociais tradicionais” (FURTADO, 1978, p. 43), ao passo que a elevada sinergia público-privada apresentava-se em moldes totalmente distintos daqueles encontrados no ocidente ante o processo de revolução burguesa — onde são claros os limites entre entidades do direito público e privado (FURTADO, 1978) —, caracterizando o primeiro ciclo de catching-up, ou emparelhamento, nipônico como essencialmente dominado pelas dinâmicas internas do Estado empresário9 que passou a “dirigir o processo de acumulação [e] responsabilizar-se pela inovação” (PEREIRA, 1975, p. 65).

Não podemos deixar de mencionar que o processo de acumulação do capital japonês visava também o desenvolvimento de uma força militar robusta (FURTADO, 1978) para abordar os tratados desiguais10 firmados na antiga ordem do xogunato. Entende-se que a industrialização foi posta a serviço da construção de um poderio militar que fizesse frente ao avanço ocidental, “mantendo-se os níveis de consumo sob estrito controle” (FURTADO, 1978, p. 59), bem como esteve diretamente ligado ao enriquecimento japonês como visto, por exemplo, pela modernização dos arsenais japoneses por rifles e canhões, incremento das fábricas de armamentos e desenvolvimento da indústria naval nacional (BUDIARTO, 2021), conforme a ascensão das indústrias têxtil, de metal e carvão entre 1876 e 1896 (GORDON, 2003). 

Em paralelo à unificação do país, ocorreram as reformas agrária e econômica por meio da criação da moeda iene e do Banco do Japão em 1872, diminuindo os estrangulamentos ocorridos durante a modernidade incipiente nipônica. No campo da educação, instaurou-se a padronização e a obrigatoriedade do ensino primário e em 1885 foram criadas as universidades. No campo da gestão, ocorreu a centralização da administração pública e a intervenção do Estado no ensino e na economia, culminando na promulgação da constituição em 1889, conduziram o país para uma monarquia constitucional (MASON; CAIGER, 1997; HOBSBAWM, 2015; UNZER, 2019).

Como resultado, uma vez que o governo manteve sob rigoroso comando e coordenação os monopólios que se formavam, o excedente nacional foi canalizado como parte de uma fusão industrial e militar11, na qual a “aventura imperialista japonesa, produto da aliança capitalista-militarista entre os zaibatsu e as forças armadas japonesas” (PEREIRA, 1975, p. 66) desdobrou-se na concepção de “uma ‘esfera de influência”‘ (FURTADO, 1978, p. 59). Nesse seguimento, impulsionado por desentendimentos entre Japão e China referentes ao envio de expedições militares de ambos os países à Coreia, instável devido a uma revolta camponesa, no ano de 1894, encadeou-se a Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895). 

Após a vitória japonesa e firmado o Tratado de Shimonoseki em 1895, esse conflito se demonstrou benéfico à Terra do Sol Nascente ao passo que territórios como Taiwan, ilhas Pescadores e península Liandong foram anexados, a Coreia estava cada vez mais presa na órbita de influência japonesa por conta do reconhecimento chinês da independência e autonomia coreana, além de ter recebido da China indenizações em altas quantias. Como exemplo da rentabilidade desse conflito, o ressarcimento chinês, de cerca de ¥ 360 milhões, foi o equivalente a 4.5 vezes o orçamento nacional do Japão em 1894, tendo sido 83% desse valor investido na indústria militar japonesa (GORDON, 2003). Além disso, vale destacar que os territórios conquistados, apesar de Rússia, França e Alemanha, diplomaticamente, terem impedido a anexação formal de Liandong por receio do fortalecimento nipônico e de sua ameaça aos interesses russos na Coreia (SAKURAI, 2007), eram importantes para a aquisição de matérias-primas que impulsionaram a indústria do Japão.  

No início do século XX, dessa vez, o império nipônico entrou em conflito com uma potência ocidental, a Rússia, devido à paulatina hostilização das relações bilaterais por conta de negociações, sem sucesso, referentes a quem obteria o controle da Coreia. Por conseguinte, o Japão atacou Port Arthur, inaugurando a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), na qual a vitória japonesa elevou o patriotismo nacional ao ser o primeiro país asiático a derrotar um país do Ocidente. A partir do Tratado de Portsmouth de 1905, a Terra do Sol Nascente conquistou os direitos russos referentes a Port Arthur, retirou a Rússia da Manchúria e nessa região chinesa investiu capitais privados e públicos para a construção, por exemplo, de linhas férreas, adquiriu territórios russos como as ilhas Curilas e parte das ilhas Sacalinas e os interesses japoneses na Coreia foram reconhecidos pela Rússia (SAKURAI, 2007; DIAS, 2022). 

Além disso, conforme Magno (2015), esse avanço japonês garantiu os insumos imprescindíveis para a consolidação e progressão da indústria militar. Com a impossibilidade da China e da Rússia em contestar o jogo de poder geopolítico do Leste Asiático, bem como pela aquiescência internacional de potências como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, o Japão teve um caminho livre para avançar sobre a Coreia, transformando-a, primeiro, em um protetorado nipônico em 1905 e, cinco anos depois, iniciando a colonização da península coreana. Vale ressaltar que esses avanços territoriais fortaleceram a percepção da elites japonesas de que o fortalecimento e o prestígio do país poderiam ser alcançados mediante a subjugação militar e econômica da Ásia, bem como os líderes políticos consideraram que a expansão territorial era necessária caso o Japão almejasse manter sua autonomia (GORDON, 2003), em uma interação entre imperialismo, poder militar e desenvolvimento econômico que seria intensamente colocada em prática e à prova na década de 1930 até a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Considerações Finais

Como pode ser observado, o Japão renasceu com as reformas da Era Meiji, cujas ações buscaram aprimorar o país aos requisitos da competitividade no comércio mundial na época, por meio de intensa industrialização com aprendizagem tecnológica, modernizações políticas, educacionais, econômicas e sociais. Essas realizações ampliaram o fôlego estrutural japonês, contribuindo com a formação de grandes conglomerados industriais, os zaibatsus que, até hoje sob o nome de keiretsu12, no século XXI, atuam em diversos setores da produção, comércio e finanças, servindo de base para a reconstrução, transformação e desenvolvimento de novas tecnologias do país nipônico. Contudo, não se pode esquecer que a decisão tomada a favor da militarização em prol da expansão, também imperialista em outros países da Ásia, conduziu o país às Guerras por meio de invasões, culminando na entrada da Segunda Guerra Mundial.


NOTAS DE RODAPÉ

1Mestra e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade São Judas Tadeu – USJT, Mestra em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC – UFABC e Economista pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS e Turismóloga pela Universidade São Judas Tadeu – USJT. Atualmente, é Primeira Vice-Presidente da Associação dos Bolsistas JICA (Japan International Cooperation Agency) e representante brasileira dos Bolsistas na Federação Latino-Americana e Caribe dos Bolsistas no Japão – FELACBEJA. É pesquisadora na Curadoria de Assuntos do Japão da CEÁSIA-UFPE e no Observatório Leste da USJT. 

2Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Atualmente, é Secretário-Geral da SWYAA Brasil. É pesquisador na Curadoria de Assuntos do Japão da CEÁSIA-UFPE, no Observatório de Regionalismo (ODR), no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (NUPRI-USP), no Grupo de Estudos de Índia e Ásia Oriental (GEsIAO) e, por fim, no Observatório de Conflitos. 

3Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua como pesquisador associado na  Curadoria de Assuntos do Japão da CEÁSIA-UFPE e no Núcleo de Estudos Japoneses (NEJAP). Sua pesquisa se concentra na política externa e marítima do Japão, contribuindo para o Boletim Geocorrente, publicação quinzenal produzida pelo Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC) do Departamento de Pesquisa e Pós-Graduação da Escola de Guerra Naval (EGN) do Rio de Janeiro.

4O período de 1603 a 1868 foi caracterizado pelo forte isolamento político-econômico do país e rígido controle interno no qual o clã Tokugawa exerceu o monopólio político. Assim, “[…] os Tokugawa permaneceram à frente da vida estatal japonesa, unificando o país e fechando relativamente suas portas ao Ocidente, excetuando-se algumas trocas com os holandeses” (ANDRÉ 2011,p. 38 apud LUIZ, 2022).

5Apesar de ter sido o primeiro Estado industrial moderno na Ásia, que conseguiu passar da área externa à área central da economia-mundo, o Japão, previamente ao seu desenvolvimento econômico industrializante, também foi atingido pela onda colonizadora e imperialista capitalista ocidental, cujo início foi simbolizado na abertura forçada dos portos japoneses ao comércio exterior durante a passagem da frota do estadunidense Comodoro Matthew Perry, em 1854. 

6Para o autor, a via de acesso à civilização industrial representada pelo Japão se baseou em um esforço para “assimilar todo um sistema de civilização material” (FURTADO, 1978, p. 34). Uma facção aristocrática “assumiu o controle do Estado e dele fez o instrumento das transformações sócio-econômicas requeridas” e conseguiu-se “implantar técnicas de produção[…] já comprovadas pela experiência de outros países” (FURTADO, 1978, p. 34). A experiência japonesa é um exemplo de “criar deliberadamente vantagens comparativas em setores favorecidos por uma demanda externa elástica” (FURTADO, 1997, p. 35 apud PAULA; ALBUQUERQUE, 2020).

7Para Furtado (1978, p. 43), o esforço industrialista veio às custas dos grandes proprietários fundiários, uma vez  que “sacrifícios impostos ao povo e também a uma parte das classes privilegiadas (particularmente os proprietários de terras) foi considerável”. A reforma agrária buscou uma centralização da propriedade fundiária, onde os domínios eram agora transferidos ao governo com o intuito de evitar embates políticos e promover a produtividade agrícola (MOURA, 2021). A expropriação das terras dos grandes latifundiários foi acompanhada da redistribuição das mesmas e da imposição de encargos em espécie ao campesinato, possibilitando uma arrecadação fiscal estável. 

8Esses grupos privados, como Mitsubishi, Sumitomo, Yasuda e Mitsui, tinham permissão para operar internamente em nível monopolista ou semi cartelista (MOURA, 2021) e a “antiga aristocracia, que a restauração Meiji expropriara mas indenizara amplamente, transformara-se na nova classe capitalista” (PEREIRA,  1975, p. 65).

9Como idealizador do impulso inicial desenvolvimentista, o Estado japonês usou de todos os recursos possíveis. Deu sempre grande ênfase à educação. Comprou patentes, estimulou a imitação, exigiu sempre que a importação de máquinas fosse acompanhada por assistência técnica, enviou japoneses ao exterior, trouxe técnicos estrangeiros para trabalhar no Japão, criou instituições para a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. Em suma, promoveu a importação maciça de técnicas estrangeiras” (PEREIRA, 1975, p.65). 

10Esses tratados deixaram o Japão com uma autonomia tarifária praticamente inexistente sobre as importações (os tributos sobre elas eram pífios e compulsórios), assim “os oligarcas […] estavam cientes de que somente com base industrial sólida e militarização os tratados desiguais impostos nos anos 1850 poderiam ser superados, viabilizando a obtenção da verdadeira ‘igualdade diplomática’” (MOURA, 2021, p. 135).

11A política externa expansionista japonesa, além de assegurar áreas coloniais, tornou o Estado nipônico, internamente, um dos maiores consumidores de produtos industrializados pela necessidade de manutenção do Exército e da Marinha de guerra.

12De acordo com Moura (2021, p. 104), os keiretsu são uma “estrutura de gigantes conglomerados industriais” que simbolizam uma nova configuração estrutural – altamente resguardada e cartelizada – para as corporações nacionais após a reestruturação dos antigos zaibatsu, sendo direcionados administrativamente com o auxílio governamental.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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