ENTREVISTA | Akiyoshi Taniguchi por Lucas Gibson
KURENBOH: ARTE, BUDISMO E CONTEMPLAÇÃO
Em uma manhã de outono em 2022, tomei um trem de Shinjuku para conhecer um lugar e uma pessoa que me despertavam grande curiosidade. Eu estava no Japão realizando uma pesquisa sobre fotolivros japoneses, com uma bolsa proporcionada pela Fundação Japão e pela Fundação Ishibashi. Na época, recebi a recomendação do Thyago Nogueira, curador de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles, para que eu visitasse e entrevistasse o monge budista Akiyoshi Taniguchi (谷口昌良, Tóquio, 1960) e sua galeria Kurenboh (空蓮房). Taniguchi ficou conhecido por ser um grande colecionador de fotografia, reunindo imagens principalmente de fotógrafos japoneses e estadunidenses ao longo da vida. Ao sair na estação de Kuramae (蔵前), fui andando pelas vizinhanças até chegar ao templo, que esbanjava serenidade e calmaria diante dos barulhos das obras do entorno.
Ao chegar, fui recebido pontualmente por Taniguchi, que propôs que eu visitasse a Kurenboh (空蓮房) antes de entrar no templo. Seu acesso se dava próximo da entrada, em uma porta de baixa altura com um logo na parte de cima.
A Galeria Kurenboh (空蓮房) é um espaço sem fins lucrativos que opera desde 11 de setembro de 2006. A mesma constitui uma espécie de espaço meditativo, buscando promover o encontro entre a cultura moderna e o budismo japonês. Foi projetada pelo arquiteto Makoto Yokomizo (ヨコミゾマコト,1962)1 e possui 3 cômodos pequenos, que acomodam apenas duas a três pessoas por vez. As visitas em seu interior devem ser, contudo, feitas por uma pessoa de cada vez. Seu minimalismo e seu cenário inspirado no ambiente das cerimônias do chá oferecem um espaço calmo e sereno para os visitantes, permitindo que as obras de arte expostas sejam contempladas com tempo e atenção, oferecendo um pouco da experiência budista.
Segundo o site da galeria, o nome Kurenboh (空蓮房) é composto por três kanji: KU 空 significa Nada ou Vazio, que é uma das ideias fundamentais no pensamento budista; REN 蓮 significa Lótus, que no imaginário budista representa o florescimento do belo a partir da lama e da sujeira, da pureza e da perfeição a partir da perturbação do mundo humano; e BOH 房significa sala de estudo.
A galeria é comandada pelo monge e colecionador de fotografia Akiyoshi Taniguchi (谷口昌良). Importantes artistas e fotógrafos já tiveram seus trabalhos expostos no espaço, como Daido Moriyama (森山大道, 1938) , Naoya Hatakeyama (畠山 直哉, 1958), Wolfgang Tillmans (1968) e Hiroshi Sugimoto (杉本博司, 1948). Ao serem convidados, os artistas são instigados a criar obras que abracem o conceito meditativo e contemplativo do local. A visitação na galeria é gratuita, mas é solicitada uma contribuição voluntária para sua manutenção. A visita também deve ser agendada com antecedência pelo site https://kurenboh.com/.
Após visitar a galeria, fui convidado por Taniguchi a adentrar o templo. A partir daí, realizamos uma entrevista sobre sua trajetória como fotógrafo, monge budista e colecionador. Após o triplo desastre de 2011, Taniguchi doou sua coleção de fotografia japonesa para o Museu de Arte Moderna de São Francisco e sua coleção de fotografia estadunidense para o Museu de Arte Moderna de Tóquio. Conversamos sobre vida, morte, impermanência e como esses conceitos se aplicam na estética fotográfica japonesa de ontem e hoje.
ENTREVISTA COM AKIYOSHI TANIGUCHI POR LUCAS GIBSON
LG: Vamos começar falando de você. Como seu interesse pela fotografia começou?
AT: Meu interesse começou quando eu tinha entre 7-9 anos de idade. Meu avô tinha a fotografia como hobby e construiu um laboratório de revelação aqui neste templo, que há muito é habitado pela minha família. É um templo que existe desde 1602 e eu sou um monge da 23º geração. Uma memória, contudo, foi a mais marcante: uma vez abri a janela daqui e vi a luz do sol projetada em uma estátua de Buda. A estátua era dourada, e ficou ainda mais brilhante com a luz. Essa visão me tocou profundamente.
LG: A luz preenchendo a estátua foi o momento chave para que você percebesse um interesse pela luz e pela fotografia?
AT: Exatamente isso. Quando vi aquilo acontecendo, tudo fez sentido para mim. Tive vontade de exclamar “oh, meu Deus”, ou na verdade “oh, meu Buda!” [risos]. Quando eu estava no ensino fundamental e no ensino médio, eu aprendi muito de fotografia por conta própria. Eu também participava do clube de fotografia que acontecia depois da aula. Tudo isso foi no início dos anos 1970, época em que o trabalho de fotógrafos como Daido Moriyama (森山大道, 1938) e Nobuyoshi Araki (荒木経惟, 1940)2 estava muito presente nas revistas fotográficas. Eu inclusive cheguei a conhecê-los, mas hoje em dia não temos mais tanta proximidade. Nessa época do pós-guerra no Japão, a fotografia assume uma postura de arte de contracultura, há muitas revistas de fotografia como Asahi Camera (アサヒカメラ), Nippon Camera (日本カメラ), Camera Mainichi (カメラ毎日) e os fotógrafos, escritores e editores batalhavam, competiam muito uns com os outros. Acho que isso representava o sentimento da época, um pós-guerra que tinha sofrido uma ocupação estadunidense e recebido muitas influências dos Estados Unidos.
LG: Quem te deu sua primeira câmera? Foi seu avô?
AT: Quando eu estava no ensino fundamental, meu avô me deu uma câmera de presente, eu tinha 12 anos na época. Era uma Canon F1.
LG: E você decidiu seguir com a fotografia desde então?
AT: Quando fiz 18 anos, eu estava terminando o colégio e boa parte dos estudantes estava se preparando para entrar numa universidade japonesa. Mas na época eu não tinha muito interesse na cultura japonesa, então comecei a procurar uma universidade que tivesse um departamento de fotografia. Hoje em dia existem várias, mas na época só tinha uma, a Universidade de Zokei em Tóquio (東京造形大学). Ao mesmo tempo, eu sempre fui muito autodidata, não gostava muito da ideia de ir para a universidade, não queria sentir que estava tendo uma vida normal, seguindo um caminho linear, sabe? Então acabei indo para uma universidade nos Estados Unidos, eu adorava jazz americano e me senti mais motivado a sair do país. Na época era amigo do fotógrafo Anzai Shigeo (安斎 重男,1939-2020) e ele também me ajudava.
LG: Chegando nos Estados Unidos, como sua conexão com a fotografia se desenvolveu?
AT: Eu estava morando em Nova Iorque e entrei para uma escola de artes visuais, mas a vida na universidade não me interessava muito, e às vezes eu retornava ao Japão para fazer meu treinamento de monge. Então eu comecei a procurar uma espécie de mestre, um mentor que pudesse me acompanhar. Foi assim que conheci Leo Rubinfien (1959), da Universidade de Yale.
LG: Leo era uma espécie de professor para você?
AT: Sim. Ele me apresentou pessoalmente muitos fotógrafos americanos como William Eggleston (1939), Lee Friedlander (1934), Larry Fink (1941), Helen Levitt (1913-2009), e também John Szarkowski (1925-2007) do departamento de fotografia do MoMA de Nova Iorque. Aprendi muito com eles, especialmente com Lee Friedlander (1934). Lancei alguns fotolivros sobre minha vida e sobre esse período nos EUA (como o Photoboy 1979-1988: My Rose Period in America), mas confesso que depois que casei, fui pai e virei monge, meu sonho de se tornar um grande fotógrafo se esvaiu, minha vida acabou tomando outros focos e direções [risos].
LG: E foi a partir desses encontros com esses fotógrafos que você começou a sua coleção?
AT: Não exatamente. Quando eu tinha 13 anos, costumava trocar fotografias com os outros estudantes do fotoclube do colégio. Esse foi o primeiro momento em que comecei a pensar em uma coleção de fato. Eu sempre coletava trabalhos de estudantes, e isso também aconteceu nos Estados Unidos. Uma vez pedi ao Leo que me desse algumas de suas fotos e ele me deu, pendurei-as em meu pequeno apartamento e as olhava todo dia. Eu buscava a beleza e suas várias facetas nas fotografias, observá-las também era uma forma de estudo para mim, olhar as fotografias com calma e cotidianamente.
LG: Então foi daí que surgiu o desejo de inaugurar a Galeria Kurenboh (空蓮房), a partir dessa necessidade de olhar as imagens de forma meditativa e contemplativa?
AT: Sim. O Budismo está sempre falando do coração, e acredito que quando olhamos para as coisas estamos olhando com o coração.
LG: Você pode falar mais sobre como você vê a relação entre Budismo e Fotografia?
AT: Eu tenho um livro escrito sobre o assunto, chamado Buddhism and Photography (“Budismo e Fotografia”, disponível apenas em japonês), publicado em parceria com o fotógrafo Naoya Hatakeyama (畠山直哉) pela editora AKAAKA. As pessoas me pedem uma edição em inglês, mas é muito difícil traduzir os conceitos budistas que estão contidos nele. Na Kurenboh (空蓮房), apenas uma pessoa pode entrar por vez, pois acredito que olhar para uma obra de arte deve ser uma experiência individual, que permita uma conexão contemplativa e meditativa. Muitas vezes, olhamos para os trabalhos de arte de maneira muito superficial. O trabalho verdadeiro está por trás, habitando uma espécie de espírito.
LG: Na sua opinião, a fotografia japonesa consegue se conectar com os conceitos de iluminação e as ideias budistas de um modo que a fotografia produzida no ocidente não consegue?
AT: Essa é uma pergunta difícil! Se olharmos para a fotografia japonesa dos anos 70, 80 e dos dias de hoje, sinto que as obras não são “secas”, mas “molhadas”. A fotografia estadunidense, por exemplo, é “seca”.3 Na minha opinião, a fotografia japonesa é mais emocional, está dentro do espírito, mais perto do coração.
LG: Uma fotografia “seca” seria uma fotografia mais fria, menos emocional, e a “molhada” seria mais emocional?
AT: Sim.
LG: A fotografia japonesa seria mais “molhada” então?
AT: Acredito que a japonesa carrega um pouco de ambas as características. Em 1978 aconteceu uma exposição chamada Mirrors and windows: American photography since 1960 (“Espelhos e janelas: fotografia americana desde 1960”, em tradução livre) com curadoria do John Szarkowski falando sobre a fotografia dos estadunidenses. A primeira impressão que tive foi essa, de que as fotografias dos americanos são muito “secas”, sem esse lado emocionado. Talvez as fotos que vi da Diane Arbus (1923-1971) destoassem um pouco nesse sentido, mas ainda assim é um estilo muito americano. Leo Rubinfien me apresentou ao fotógrafo brasileiro Miguel Rio Branco (1946) na época em que estava acontecendo a exposição dele sobre Tóquio (quando Daido Moriyama森山大道fotografou São Paulo e Rio Branco fotografou Tóquio), e ao ver o trabalho dele percebi que a fotografia brasileira é muito diferente da estadunidense, sinto que a brasileira é mais próxima da japonesa.
LG: Independente de tudo, não-japoneses tendem a ter mais dificuldade em entender conceitos da estética japonesa, como Wabi Sabi (侘寂)4 e Mono no Aware (物の哀れ), não acha?
AT: Sim, de fato. Esses conceitos são de difícil explicação. Mono no Aware (物の哀れ) trata dessa ideia de impermanência, de que as coisas um dia se vão, inclusive nossa vida, então não há nada fixo e imutável. Esse momento agora está indo também. No Budismo falamos de tempo, o tempo não é nada, seu conceito é vazio.
LG: Como você vê a relação do tempo na fotografia e o tempo no Budismo?
AT: Acredito que meu interesse na fotografia está no fato dela tentar capturar o tempo, mesmo sabendo que o tempo passa e que não é possível pará-lo. Mas o desejo, a esperança dos seres humanos é o de conseguir aprisionar o tempo, e nesse processo se dar conta da impossibilidade disso. Os desenhos de Leonardo Da Vinci, por exemplo, estão envelhecidos, amarelados, não há objetos fixos no tempo. As fotografias também desaparecem e viram cinzas.
LG: Essa sensação de impermanência das coisas foi o motivo pelo qual você quis doar sua coleção de fotografia japonesa para o MoMA de São Francisco, e a de fotografia estadunidense para o Museu de Arte Moderna de Tóquio?
AT: Sim, depois do triplo desastre de 2011, muitas pessoas perderam suas vidas, suas casas, seus objetos, e esse sentimento de que tudo se vai ficou mais nítido para mim, o Mono no Aware (物の哀れ). Fiquei vendo essas fotos valiosas da minha coleção, esses objetos de alto valor de mercado… Munashii5 (空しい).
LG: Recentemente fui na Tokyo Art Book Fair6 e vi a obra Vortex do fotógrafo Kikuji Kawada (川田 喜久治, 1933), que é um livro com as imagens que ele postava no Instagram. Me surpreendi quando encontrei um texto seu. Pode falar mais sobre?
AT: Kawada (川田) é um velho sensacional! [risos]. Normalmente os homens mais velhos são muito saudosos dos velhos tempos, mas Kawada (川田) está sempre animado com as novidades, olhando para frente, usando o Instagram, no auge de seus noventa anos. E em Vortex as imagens são muito interessantes, têm um frescor de juventude. Seus trabalhos mais antigos como Chizu (地図, 1965)7 também são indiscutivelmente incríveis. Há 30 anos comprei uma imagem da série, a clássica imagem da bandeira japonesa pisoteada, e doei junto com a coleção.
LG: Tivemos uma longa e proveitosa conversa, e para finalizar gostaria de fazer a seguinte pergunta: para você, como o Budismo e o Xintoísmo se relacionam com as ideias de vida e morte e como se conectam com a fotografia?
AT: Penso que a resposta está no Mono no Aware (物の哀れ). Não saberemos quando iremos partir, mas sabemos que será um dia. Como um monge, preciso conduzir diversas cerimônias de funeral. A morte não é o fim da vida, penso que renasceremos de alguma forma, e vejo que os japoneses lidam com a morte de maneira mais natural. O Budismo e o Xintoísmo auxiliam nesse processo, pois trazem um diálogo sobre o ciclo da vida e da natureza. Meu corpo é apenas uma parte da natureza. Claro que sentimos tristeza na morte, e claro que sentimos um medo natural dela, mas se eu viver mais 200 anos eu vou morrer de qualquer jeito, é algo que não posso controlar, e não somos maiores ou mais importantes que a natureza. Como um monge ensino exatamente isso, o arugamama (在るが儘) – as coisas como elas são. Os ocidentais, e especialmente os americanos, têm muita dificuldade de entender isso. Os americanos acham que podem comprar a vida com dinheiro, e o Budismo não acredita nisso. Não se pode comprar a vida com dinheiro.
Entrevista conduzida em inglês no templo Chouou-in (長応院) em Kuramae (蔵前), Tóquio, em 04 de novembro de 2022.
NOTAS DE RODAPÉ
1Yokomizo costuma utilizar o katakana para escrever o próprio nome.
2Dois dos fotógrafos japoneses mais importantes do pós-guerra, responsáveis por contribuições significativas para a estética fotográfica da época e atuantes até os dias de hoje.
3Taniguchi utiliza as palavras em inglês “dry” (seca) e “wet” (molhada) para descrever essa linha de raciocínio.
4Uma definição precisa desse conceito pode ser encontrada no site do Grupo de Estudos Arte Ásia da USP/Unifesp: “Wabi-sabi (詫寂) (…) caracteriza-se pela simplicidade, que dialoga com o abandono, a singeleza, a naturalidade e a rusticidade, tornando-se uma estética representativa do Japão”. Fonte: https://geaa.art.br/wabi-sabi-%e8%a9%ab%e5%af%82/
5Taniguchi usa essa palavra em japonês no meio de seu fluxo de pensamentos, que remete à ideia de “vazio”.
6 Celebrada feira de fotolivros do Japão.
7Fotógrafo muito importante do pós-guerra, autor de O Mapa (地図,1965), um dos fotolivros mais celebrados da história da fotografia japonesa.
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