31 de maio de 2021
A Etiópia é um país federalista, dividido etnicamente por regiões. No extremo norte se encontra a região Tigré, nomeada devido à etnia tigré que habita o local. Este território é palco do conflito deflagrado em 04 de novembro de 2020, após uma ofensiva militar do governo etíope, tendo a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT, ou em inglês, TPLF) como alvo, pois eles teriam realizado um ataque à base da Força de Defesa Nacional da Etiópia para neutralizá-los e confiscar armamento militar, segundo comunicado oficial do Primeiro-Ministro etíope [1]. O ataque, no entanto, foi negado pelo TPFL, que acredita que o mandato do atual Primeiro-Ministro etíope, Abiy Ahmed, é ilegítimo, pois ele adiou as eleições devido à pandemia [2]. Oficialmente, o fim do conflito ocorreu em 28 de novembro do mesmo ano, após as tropas do governo tomarem o controle da capital do Tigré, Mek’ele, entretanto, não é o que se vê na prática. Além disso, a etnia Amara, que compõe uma região fronteiriça do Tigré no sul, e a Eritreia, que faz fronteira com o Tigré ao norte, se juntou ao governo, principalmente por ressentimentos históricos com o FLPT. Um dos efeitos negativos dessa guerra é o aumento recente de ataques a etnias na Etiópia, cuja defesa pelo governo tem sido ineficiente, trazendo à tona a questão de privilégios étnicos que vieram com o estabelecimento do sistema federalista no país [3].
Contexto Político
O FLPT é uma organização que dominou a Etiópia por cerca de 27 anos. Em 2018, devido a descontentamentos da população, principalmente das duas maiores etnias, Amara e Omoro, que realizaram inúmeros protestos em massa e retiraram o governo do FLPT do poder, ocorreu a nomeação do Primeiro-Ministro Abiy Ahmed. Desde então, o contato entre o FLPT e o governo federal tem sido conturbado. A organização se recusou a entregar fugitivos e a se juntar à coalizão criada pelo novo Primeiro-Ministro para substituir a antecessora, seguindo em frente com as eleições locais, apesar do adiamento nacional devido à pandemia [4]. Em 19 de março de 2021, o governo da Etiópia deu um ultimato ao FLTP, classificando-os como um grupo ilegal que ameaça o país, para que se entregassem e dessem fim ao conflito [5], o que expõe o pensamento que o governo possui da organização dado o atual nível da tensão.
Em meio a isso, há a participação de combatentes da Eritreia e da etnia amara, que estão sob amplas acusações dos tigrés e de autoridades internacionais, devido a inúmeras atrocidades que teriam cometido aos civis ao longo desse conflito. O presidente da Eritreia, Isaias Afwerk, possui um extremo ressentimento com o FLPT devido ao envio de tropas que colaborou com a destruição da Eritreia na guerra de 1998-2000, apesar do apoio que o país deu à organização em sua rebelião [6]. Enquanto isso, os Amaras guardam descontentamento desde a época em que o FLPT esteve no poder, pois eles os acusam de anexar suas terras [6]. O governo etíope tem agido em conjunto com esses povos para neutralizar os tigrés, embora, mais recentemente, após o ápice de acusações de atrocidades cometidas pelos combatentes iritreenses, a Eritreia tenha anunciado a remoção de tropas, bem como negado todas as acusações [7].
Atrocidades
O conflito tem sido marcado por ampla variedade de atrocidades, incluindo assassinatos, estupros e violência sexual, ataques contra civis e refugiados, destruição intencional dos suprimentos de alimentos da região, das instalações de saúde e de antigas heranças culturais, além de obstrução de ajuda humanitária [8]. De acordo com a Organização Internacional para Migração (IOM), há mais de 1.7 milhão de pessoas deslocadas e precisando de assistência urgente devido ao conflito em 265 locais acessíveis na região do Tigré e nas vizinhas Afar e Amara [9].
De acordo com um relatório da Comissão Etíope de Direitos Humanos (EHRC), em 9 de novembro de 2020, mais de 600 homens das etnias Amara e Wolkait foram assassinados na cidade de Mai-Kadra por um grupo informal tigré. O episódio foi classificado pela EHRC como crime de guerra e crime contra a humanidade [10]. Refugiados etíopes no Sudão também relataram massacres semelhantes de membros da etnia Tigré por forças regionais de Amara e milícias aliadas em Mai Kadra, Humera e áreas do entorno [3]. Ao menos 800 pessoas foram assassinadas nos arredores de Aksum no final de novembro, inclusive civis que se abrigavam na igreja de Santa Maria de Sião. Em Dengelat, civis foram assassinados entre 30 de novembro e 2 de dezembro de 2020, inclusive na igreja de Maryam Dengelat, onde forças da Eritreia abriram fogo contra os fiéis [3]. Em 21 de janeiro, o Representante Especial da ONU para Violência Sexual em Conflito detalhou relatos de violência sexual, inclusive sobre indivíduos forçados a cometer estupros contra membros de sua própria família [3].
A entrega de ajuda humanitária sofre com obstáculos, deixando 4.5 milhões de pessoas necessitando de suprimentos alimentares de emergência. De acordo com a Cruz Vermelha Etíope, em 10 de fevereiro, cerca de 80% do Tigré estava fora do alcance da ajuda. Metade dos hospitais da região também estavam inacessíveis, saqueados ou destruídos. Dois campos que abrigam refugiados da Eritreia, Hitsats e Shimelba, foram destruídos em janeiro [3]. Até fevereiro, o governo federal estava bloqueando o acesso da mídia e de agências de ajuda ao Tigré. Embora tenha relaxado essas restrições, o progresso tem sido lento [6]. Em 20 de maio, o Escritório das Nações Unidas para Coordenação de Assuntos Humanitários (UNOCHA) lançou relatório detalhando que o acesso humanitário no Tigré continua imprevisível dado o aumento de incidentes de negação de movimentos de carga de socorro e confisco de veículos e suprimentos humanitários pelas partes no conflito [12].
Resposta Internacional
Em 21 de novembro, a União Africana nomeou três enviados de alto nível para negociar a paz em Tigré. Em 27 de novembro, os enviados visitaram Adis Abeba, ocasião em que o Primeiro-Ministro Abiy rejeitou seus pedidos [3].
Em 4 de novembro, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, expressou preocupação com os embates em Tigré, pedindo uma resolução pacífica [13]. Em 13 de novembro, os Conselheiros Especiais da ONU para Prevenção de Genocídio e para Responsabilidade de Proteger publicaram pronunciamento instando as autoridades da Etiópia a protegerem sua população de maior violência [3]. Em 26 de fevereiro, a Alemanha fez uma declaração conjunta ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em nome de 42 estados membros, pedindo ao governo etíope que responsabilize os autores de violações de direitos humanos [3]. Em 4 de março, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) pediu ao governo da Etiópia que concedesse acesso a monitores independentes “para estabelecer os fatos e contribuir para a responsabilização, independentemente da afiliação do perpetrador” [3]. Em 25 de março, a Comissão Etíope de Direitos Humanos (EHRC) e o OHCHR concordaram em realizar uma investigação conjunta sobre violações dos direitos humanos [14]. O Conselho de Segurança da ONU lançou um Pronunciamento à Imprensa em 22 de abril, mais de 5 meses após o início do conflito. O Conselho ressaltou que a insegurança em Tigré constitui um obstáculo às operações humanitárias e pediu pela restauração da normalidade. Além disso, expressou profunda preocupação quanto às alegações de violações e abusos de direitos humanos, como relatos de violência sexual contra mulheres e meninas, e pediu investigações para encontrar os responsáveis e levá-los à justiça [15].
Em 17 de novembro, o então Secretário de Estado dos Estados Unidos, Michael Pompeo, divulgou nota condenando ataques feitos pela FLPT ao aeroporto em Asmara, na Eritreia, instando o grupo e as autoridades etíopes a tomarem medidas para fim da escalada militar [16]. Em 30 de novembro, o então Secretário realizou uma ligação com o Primeiro-Ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, reiterando a preocupação dos Estados Unidos com a continuação das hostilidades, apesar do anúncio do governo etíope sobre o fim do conflito em 28 de novembro [17]. Em 23 de maio, o atual Secretário de Estado, Antony Blinken, declarou que os Estados Unidos estavam profundamente preocupados com a crise no Tigré, com as violações de direitos humanos e com o bloqueio de ajuda humanitária por parte de militares da Etiópia, da Eritreia e de outros grupos armados. Exigiu ainda que o governo etíope garantisse o acesso humanitário, responsabilizasse os envolvidos em violações de direitos humanos, e que o governo da Eritreia retornasse suas tropas. Além disso, os Estados Unidos impuseram restrições à Etiópia sobre assistência econômica e securitária, o que seria estendido à Eritreia, mantendo, porém, a assistência humanitária [18].
A União Europeia reteve 88 milhões de euros em ajuda orçamentária para a Etiópia devido à situação de direitos humanos no Tigré [3]. Em relação ao apoio humanitário, a União Europeia enviou recursos na ordem de 63 milhões de euros em 2020 para parceiros humanitários, além de 53.7 milhões de euros em ajuda humanitária, anunciados em 19 de abril [19]. A União Europeia demandou repetidamente o pleno acesso humanitário a todas as áreas e retirada das tropas vindas da Eritreia, alertando que o uso de ajuda humanitária como arma de guerra é uma grave violação do direito humanitário internacional e que os responsáveis por impedir deliberadamente o acesso oportuno serão responsabilizados [20].
[1] Federal Democratic Republic of Ethiopia: Office of the Prime Minister. TPLF attacks Ethiopian National Defense Forces Base in Tigray. Disponível em: <https://pmo.gov.et/media/documents/November_4_Press_Release_.pdf>.
[2] BBC. Ethiopia Tigray crisis: Abiy issues ‘ultimatum’ as civilians flee fighting. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-54960150>.
[3] Global Centre for the Responsibility to Protect. Ethiopia. Disponível em: <https://www.globalr2p.org/countries/ethiopia/>.
[4] The Guardian. Rise and fall of Ethiopia’s TPLF – from rebels to rulers and back. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2020/nov/25/rise-and-fall-of-ethiopias-tplf-tigray-peoples-liberation-front>.
[5] Federal Democratic Republic of Ethiopia: Office of the Prime Minister. Final notice from the government to all allied with the TPLF outlaws. Disponível em: <https://pmo.gov.et/media/documents/Mar_19_-_Final_Notice_from_the_Government_to_All_Allied_with_the_TPLF_Outlaws.pdf>.
[6] International Crisis Group. Ethiopia’s Tigray War: A Deadly, Dangerous Stalemate. Disponível em: <https://www.crisisgroup.org/africa/horn-africa/ethiopia/b171-ethiopias-tigray-war-deadly-dangerous-stalemate>.
[7] United Nations Security Council. Letter dated 16 April 2021 from the Permanent Representative of Eritrea to the United Nations addressed to the President of the Security Council. Disponível em: <https://digitallibrary.un.org/record/3921616>.
[8] Global Centre for the Responsibility to Protect. Atrocity Alert No. 250: Ethiopia, DR Congo and 5 Years of Atrocity Alert. Disponível em: <https://www.globalr2p.org/publications/atrocity-alert-no-250-ethiopia-dr-congo-and-5-years-of-atrocity-alert/>.
[9] International Organization for Migration. Over 1.7 Million People Displaced Due to Conflict Need Urgent Assistance in Northern Ethiopia: IOM. Disponível em: <https://www.iom.int/news/over-17-million-people-displaced-due-conflict-need-urgent-assistance-northern-ethiopia-iom>.
[10] Ethiopian Human Rights Commission. Tigray: Maikadra Massacre of Civilians is a Crime of Atrocity. Disponível em: <https://twitter.com/EthioHRC/status/1331220839983964163/photo/1>.
[11] Global Centre for the Responsibility to Protect. Atrocity Alert No. 248: Myanmar (Burma), Ethiopia and Syria. Disponível em: <https://www.globalr2p.org/publications/atrocity-alert-no-248-myanmar-burma-ethiopia-and-syria/>.
[12] United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs. Daily Noon Briefing Highlights: Ethiopia. Disponível em: <https://www.unocha.org/story/daily-noon-briefing-highlights-ethiopia-18>.
[13] United Nations. Secretary-General Expresses Alarm over Reported Clashes in Ethiopia’s Tigray Region, Calls for Immediate De-escalation of Tensions. Disponível em: <https://www.un.org/press/en/2020/sgsm20396.doc.htm>.
[14] United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs. Ethiopia: The Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights and the Ethiopian Human Rights Commission to conduct a joint investigation with a view to a credible accountability process. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/Pages/NewsDetail.aspx?NewsID=26949&LangID=E>.
[15] United Nations Security Council. Security Council Press Statement on Ethiopia. Disponível em: <https://www.un.org/press/en/2021/sc14501.doc.htm>.
[16] U.S. Department of State. The United States Condemns the Attack on Eritrea by the Tigray People’s Liberation Front. Disponível em: <https://2017-2021.state.gov/the-united-states-condemns-the-attack-on-eritrea-by-the-tigray-peoples-liberation-front/index.html>.
[17] U.S. Department of State. Secretary Pompeo’s Call with Ethiopian Prime Minister Abiy. Disponível em: <https://2017-2021.state.gov/secretary-pompeos-call-with-ethiopian-prime-minister-abiy/index.html>.
[18] U.S. Department of State. United States’ Actions To Press for the Resolution of the Crisis in the Tigray Region of Ethiopia. Disponível em: <https://www.state.gov/united-states-actions-to-press-for-the-resolution-of-the-crisis-in-the-tigray-region-of-ethiopia/>.
[19] European Commission. EU continues to address humanitarian needs in Ethiopia by allocating over €53 million. Disponível em: <https://ec.europa.eu/echo/news/eu-continues-address-humanitarian-needs-ethiopia-allocating-over-53-million_en>.
[20] Delegation of the European Union to Ethiopia. Ethiopia: Statement by High Representative Josep Borrell and Commissioner for Crisis Management Janez Lenarčič on restricted humanitarian access to Tigray. Disponível em: <https://eeas.europa.eu/delegations/ethiopia/98491/ethiopia-statement-high-representative-josep-borrell-and-commissioner-crisis-management-janez_en>.