O Genocídio em Ruanda e a Atuação Internacional

7 de junho de 2021

Circunstâncias históricas:

Após o término da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), a Bélgica passou a colonizar Ruanda – devido à perda da Alemanha na referida guerra. Seguindo o padrão de atuação dos países imperialistas no continente africano, para controlar e manipular as relações locais, a Bélgica deixou a minoria tutsi no poder, enquanto que a maioria hutu não tinha acesso a privilégios.

Devido a esta composição, houve uma revolta hutu em 1959. Porém, ao invés de tentar um governo partilhado, o representante belga substituiu os governantes tutsis por hutus, levando ainda a um revanchismo deste em cima da minoria.

Em 1962, Ruanda se tornou uma república independente, através de um plebiscito com participação da ONU, mas os postos de comando permaneceram sob o controle dos hutus; a violência contra a minoria étnica tutsi seguiu acontecendo, o que gerou diversos refugiados. Apesar do golpe em 1973, o favorecimento aos hutus permaneceu, uma vez que Juvenal Habyarimana (1973 – 1994) era o presidente e era tido como um hutu moderado. Durante os anos seguintes, ainda houve ataques hutus contra os tutsis refugiados e exilados. Isto levou a criação de diversos grupos, como a Frente Patriótica Ruandesa (FPR). Esta tinha o intuito de chegar à reconciliação entre as diferentes etnias.

Em 1990, a FPR tentou trazer os refugiados tutsis de volta à Ruanda. Para tanto, a FPR atacou o país, o que levou a uma guerra civil. França e Bélgica enviaram tropas para a proteção dos seus, enquanto o Zaire (atual República Democrática do Congo) ainda apoiou o governo de Ruanda. A FPR não obteve êxito e tornou-se um grupo de guerrilha. O governo massacrava tutsis e os guerrilheiros, hutus.

Apesar das pressões internacionais, após o fim da Guerra Fria, para Ruanda se tornar de fato uma democracia, existia um abismo devido ao ódio étnico, que utilizava a mídia como um instrumento de difusão de pureza racial. Com a perda de vários líderes, Paul Kagame se torna a principal voz da FPR. A articulação internacional para tentar criar um governo moderado falhou, mas a escalada da violência e a pressão dos atores internacionais levou as lideranças à mesa.

Em 1993 foi assinada a Declaração de Arusha para colocar fim à guerra civil e ainda houve um acordo para a participação da FPR no governo de transição. A ONU, a fim de assegurar o cessar fogo, enviou a força UNAMIR – sigla em inglês que se refere à Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda. Entretanto, um acidente de avião mata o então presidente Habyarimana e o presidente do Burundi durante as negociações de paz. Após essa tragédia, a violência espalhou-se pelo país.

O genocídio

Como pólvora, a violência assola o país, e tutsis e hutus moderados são massacrados, o que por sua vez promove a retaliação da FPR. Governo e refugiados fogem para o Zaire. Enquanto isso, o chefe da UNAMIR, o general canadense Roméo Dellaire, tenta articular um cessar-fogo, mas não existe qualquer confiança entre as partes devido à atuação do novo governo – composto por extremistas hutus – e os interahamwe. A FPR se negava a negociar devido à forma de organização do governo e a persistência da violência.

Diante do cenário, o CSNU (Conselho de Segurança das Nações Unidas) é provocado a se manifestar, declara ameaça à paz e segurança internacionais e aprova um embargo de armamentos.  O mandato da UNAMIR não tinha capacidade para atuar nessas condições. Após uma resolução equivocada que diminuía o efetivo no local (Resolução nº 912, em 12 de abril de 1994), o CSNU aprovou a Resolução nº 918, em 17 de maio de 1994, que instalava a UNAMIR II. De acordo com o relatório de organizações internacionais – como Human Rights Watch, Médicos Sem Fronteiras e OXFAM –, o ápice do massacre foi durante o período entre abril e maio de 1994.

Foi só com a Resolução nº 929, de junho de 1994, ao invocar o Capítulo VII da Carta, que se passou a dar proteção aos refugiados. Para a sua execução, houve um acordo entre os membros permanentes do Conselho a fim de atender seus interesses. A França seria responsável pela coordenação da ONU em Ruanda.

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Inicialmente, a França apoiava o governo hutu devido aos laços francófonos e área de influência, enquanto a FPR era próxima da área de influência inglesa. Após a morte do presidente, a França apoiou a retirada de tropas da ONU. A ofensiva da FPR alterou a percepção francesa, que passou a advogar pela intervenção. 

A autorização do CSNU só ocorreu em julho de 1994 com a Operação Turquesa. A atuação da França nessa operação foi contraditória, pois visava impedir o avanço da FPR, mas atuava na área dominada pelo governo onde não protegia a minoria étnica, mas sim os hutus. Além disso, ainda tinha intenção de liderar uma ofensiva para recolocar o governo hutu no poder.

Com a eleição de Bill Clinton nos EUA houve uma mudança substancial na forma de atuação da política externa, especialmente devido ao fracasso que foi a Somália.

Em julho de 1994, a FPR alcança a capital Kigale e instaura um novo governo com Pasteur Bizimungo como Presidente, com Paul Kagame como vice. O objetivo ali era criar um governo repartido, assegurando o Tratado de Arusha. Ao término do conflito, vários hutus deixaram o país com medo da vingança tutsi, e aqueles que não conseguiram foram para áreas de proteção francesa.

A ocorrência do genocídio de forma rápida, sistemática e cruel, matando quase um milhão de pessoas, gerou uma problemática para a comunidade internacional, especialmente pela paralisia da ONU e o não reconhecimento inicial das atrocidades perpetradas, bem como a atuação precária de potências ocidentais.

A instalação de um Tribunal Penal Internacional para Ruanda iria tentar dirimir e pacificar o país através de uma justiça de transição com o intuito de criar um Estado estável e democrático. Em 2008, três integrantes do governo hutu (Theoneste Bagosora, Aloys Ntabakuze e Anatole Nsengiyumva) durante o período do genocídio foram condenados à prisão perpétua pelo tribunal. Os números do tribunal, de acordo com o site oficial, são:

Fonte: International Criminal Tribunal for Rwanda.

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Tradução:
93 Indivíduos indiciados pelo Tribunal Internacional para Ruanda;
62 Sentenciados;
14 Absolvidos;
3 Fugitivos procurados pelo MICT
2 Mortes antes do julgamento
2 Acusações retiradas antes do julgamento

Consequências

A paralisia da ONU e a atuação dos países envolvidos foram temas de escrutínios após a propagação das condutas equivocadas atreladas à comunidade internacional. O ponto onde Ruanda se encontra ainda é uma região instável.

The Observer view on Rwanda and Paul Kagame's lust for power | Rwanda | The  Guardian
Paul Kagame, Presidente da Ruanda

Atualmente, o presidente do país é Paul Kagame, um dos líderes da então FPR, e existem sussurros sobre sua conduta durante a guerra civil. A relação com a França ainda não está completamente restabelecida, pois diversos indivíduos que participaram das atrocidades encontraram proteção do exército francês na época e guarida em Paris.

A atuação da França gerou tanta polêmica que foi publicado um relatório, em 19 de abril de 2021, sobre a aquiescência francesa com as atrocidades perpetradas. O presidente francês, Emmanuel Macron, declarou que busca o perdão pelo reconhecido papel que a França teve no genocídio de Ruanda e, ainda, tenta reformar a relação entre os dois países. Ademais, as consequências do ocorrido ainda ecoam em outros lugares, como o instável Congo.

Referências

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Imagens:

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