5 de julho de 2021
O Sahel
Expandindo-se da Costa Oeste do Continente Africano, Senegal e Mauritânia, à Costa Leste, Sudão e Eritréia, o Sahel é uma região transitória, semi-árida, entre o Saara e as savanas ao sul. O Sahel (do árabe سَاحِل, sāḥil, “costa’’) age como um cinturão que divide o continente em dois, a África majoritariamente islâmica, ao norte, e a cristã, ao sul. Englobando ao menos onze países, a região é lar para dezenas de grupos étnicos. Embora hoje não se tenha divisões tão claras, tradicionalmente esses grupos se dividem entre pastores nômades e fazendeiros sedentários. Atualmente o Sahel é uma região extremamente volátil, impactada por diversas crises, como: o aquecimento global, limpezas étnicas e a ameaça terrorista. Com Estados fracos e bordas porosas, a região é um ponto chave para organizações criminosas e propensa a crises migratórias.
Questões históricas e fronteiriças
Com a Conferência de Berlim (1884-1885), o continente africano foi repartido entre as potências europeias. As bordas dessas novas colônias foram formadas arbitrariamente, seguindo os interesses dos colonizadores, dividindo o território de povos ali habitantes¹. O Sahel foi dividido predominantemente entre Grã-Bretanha (Sudão, Sudão do Sul e Nigéria) e França (Mauritânia, Senegal, Burkina Faso, Mali, Níger e Chad), com o restante do território (Eritréia, Etiópia e Somália) ficando para os Italianos. Após a conquista europeia e o “fardo do homem branco”, os europeus impõem sua cultura e língua à população. Em 1959 o antropologista estadounidense George Murdock publica seu livro intitulado: Africa: its people and their culture history, nele o autor constrói um mapa aproximado da ocupação e territórios dos grupos étnicos no continente. Até os dias de hoje, depois de suas independências, as bordas dos Estados africanos não representam a herança cultural e histórica dos grupos étnicos que os habitam . Tendo em vista a fragilidade dos Estados, ou mesmo a total não presença em determinadas áreas, abre-se espaço para organizações criminosas.
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Através de rotas transaarianas, a região tem servido como um entreposto comercial na borda do “mar de areia”. Há registros milenares quanto à transação de bens, como ouro, sal e escravos². Hoje, pela porosidade das fronteiras no deserto, essas mesmas rotas são usadas no trânsito de mercadorias ilícitas, como armamento e drogas³. Na borda do deserto, povos nomádicos e semi-nomádicos, como os Tuaregues, se expandem por uma imensa região do Mali à Líbia, passando pela Argélia e Níger. Historicamente eles exerceram papel fundamental nessas rotas, como comerciantes ou guia de caravanas. Após a independência do Mali, em 1960, pelo caráter federativo do novo Estado, tensões surgem entre os povos Mandê, ao sul, e os Tuaregues, ao norte, nenhum dos povos conseguia exercer controle sobre o território do outro. Os Tuaregues se rebelam por seu território no Mali, chamado de Azauade, logo após a criação do Estado. Outras rebeliões e insurgências seguem, em especial quando se aliam à Líbia de Gaddafi e ao Ansar Dine, grupo islamista supostamente ligado ao AQIM (al-Qaeda no Magrebe Islâmico). Após a queda de Gaddafi em 2011 e com as instabilidades na região causadas por grupos terroristas, a organização política e militar MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azauade) foi criada. O MNLA é formado por Tuaregues, em sua maioria, e é considerado secular. Em 2011 o MNLA se rebelou contra o governo e junto a outros grupos, como o Ansar Dine, causando uma guerra civil sem conclusão até o dia atual. Com dois golpes de estado, em 2012 e novamente em 2020, grupos terroristas e uma guerra civil, o Mali é um Estado falho e com muitos desafios à sua frente.
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² https://www.metmuseum.org/toah/hd/gold/hd_gold.htm
³https://www.dw.com/en/sahel-trade-routes-arms-people-and-drugs/a-37125072
Crise humanitária
Em abril de 2013 é criada a MINUSMA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização do Mali), dentre os seus objetivos estão: a estabilização da região, proteção dos civis e monitoramento dos direitos humanos. Em seu mais recente relatório, datado de 1º de junho de 2021, reporta-se: “[…] a MINUSMA documentou 422 violações dos direitos humanos (181) e abusos (241), 13 a mais que no período anterior. Estes incluíam execuções extrajudiciais sumárias ou arbitrárias (39), outras mortes (41), lesões (72), tortura ou maus-tratos (51), desaparecimentos forçados (6), sequestros (118), prisões ilegais e detenções, incluindo casos de detenção prolongada e violações do devido processo penal (95), bem como casos de deslocamento maciço e forçado de civis, ameaças de morte e intimidação, pilhagem e destruição de propriedade 4.”
Os desafios enfrentados na Região do Sahel englobam questões humanitárias e de segurança da população. A soma dos eventos climáticos com todos os demais fatores, como corrupção enraizada, tráfico ilícito, terrorismo e COVID-19 , desencadeou uma instabilidade e consequentemente um processo de desumanização da população da Região do Sahel. De acordo com a UNHCR, há cerca de um total de 1.340,263 deslocados internos na região até fevereiro de 2020, buscando outras regiões com melhores condições de desenvolvimento e segurança.
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4https://minusma.unmissions.org/en/reports
Conflitos, atrocidades massivas e refugiados
As diferenças sociais, ideológicas e culturais culminaram em violência coletiva e desenvolveu práticas eliminatórias de determinados grupos da população (limpeza étnica), bem como intensificou a falta de acesso a serviços humanitários, ataques a escolas e hospitais, sequestros, violência sexual contra mulheres, mutilação, deslocamento de grupos e ataques a instituições do Estado. Os mais recentes acontecimentos ocorreram no Mali, em Março de 2012, estabelecendo o golpe militar e em 2019, somente no Mali, 745 violações graves contra crianças foram registradas.
Com o decorrer dos anos, verificou-se a expansão dos grupos extremistas que vêm desenvolvendo impactos devastadores em Burkina Faso, Mali e Níger, resultando em milhões de famílias sendo deslocadas em toda a região, fugindo para outras regiões que também são afetadas pelos mesmos fatores, violência e pobreza, totalizando cerca de 650.000 pessoas deslocadas só em 2019, segundo a ONU. De acordo com o Alto Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR) em 2020, estima-se que em Burkina Faso cerca de 5% de sua população fugiu da violência em seu país e, ao mesmo tempo, cerca de 25.000 refugiados viviam em assentamentos em seu território. A maior parte vindos do Mali, fugindo do surto de violência cometidas por rebeldes ligados ao Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. Esses deslocamentos massivos no continente africano já atingem países vizinhos ao Sahel, como Chade, Costa do Marfim, Mauritânia, Gana, Benin e Togo.
Atuação internacional
O Tribunal Penal Internacional voltou suas atenções à região em 2013, sentenciando, finalmente, em 2017, o antigo líder do Ansar Dine Ahmad al-Faqi al-Mahdi pela destruição de um patrimônio mundial em Timbuktu, classificado como crime de guerra. O Conselho de Segurança da ONU também atuou impondo sanções a oito indivíduos no Mali por violação aos direitos humanos, incluindo o recrutamento de crianças-soldado e ataques a membros da ONU.
Com a baixa capacidade dos governos da região do Sahel, que surgiram de processos coloniais, e efeitos de mudanças climáticas, problemas relacionados ao acesso à saúde, garantia à educação e às demais questões relacionadas à subsistência estão delegadas a diversas Organizações Não Governamentais (ONGs) que realizam o trabalho do Estado. As ONGs mais atuantes, atualmente, na região do Sahel desenvolvem trabalhos com apoio de voluntários e doações.
ONGs como o ACNUR, o Médicos sem fronteiras (MSF) e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) desenvolvem ações com o propósito de oferecer abrigo, acesso à água potável, acesso à assistência médica, apoio psicológico às vítimas de violência sexual ou de gênero, bem como atividades de proteção aos refugiados.
Referências
ACNUR. Seis histórias para entender a crise no Sahel. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/07/06/seis-historias-para-entender-a-crise-no-sahel/. Acesso em: 28 de Junho de 2021.
ACNUR. Crise do Sahel explicada. Disponível em: https://www.unrefugees.org/news/sahel-crisis-explained/. Acesso em: 02 de Julho de 2021.
ACNUR. Crise no Sahel: resposta de emergência e proteção do ACNUR Disponível em: https://data2.unhcr.org/en/documents/details/76874. Acesso em: 02 de Julho de 2021.
BBC. Cinturão do Sahel, o esconderijo de jihadistas na África que preocupa cada vez mais a Europa. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42996119. Acesso em: 28 de Junho de 2021.
Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Conflitos no Mali. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/conflito-no-mali. Acesso em: 02 de Julho de 2021.
DeutscheWelle (2017) Angela Merkel: ‘Urgent’ need for Sahel anti-terror force. Disponível em: https://www.dw.com/en/angela-merkel-urgent-need-for-sahel-anti-terror-force/a-41773078?maca=en-rss-en-all-1573-rdf. Acesso em: 20 de Junho de 2021.
Deutsche Welle. Sahel trade routes: Arms, people and drugs. Disponível emhttps://www.dw.com/en/sahel-trade-routes-arms-people-and-drugs/a-37125072
Acesso em: 20 de Junho de 2021.
G1. Burkina Faso: ataques mais sangrentos desde 2015 deixam ao menos 138 mortos. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/06/05/burkina-faso-ataques-mais-sangrentos-desde-2015-deixam-aos-menos-138-mortos.ghtml. Acesso em: 02 de Julho de 2021.
Médicos Sem Fronteiras. MSF expande suas atividades na região do Sahel para combater crise de desnutrição. Disponível em: https://www.msf.org.br/noticias/msf-expande-suas-atividades-na-regiao-do-sahel-para-combater-crise-de-desnutricao. Acesso em: 02 de Julho de 2021.
MINUSMA. Reports. Disponível em: https://minusma.unmissions.org/en/reports. Acesso em: 20 de Junho de 2021.
ONU NEWS. ONU: 4,8 milhões de pessoas no Sahel Central estão sob ameaça de fome. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/02/1702702. Acesso em: 28 de Junho de 2021.
The Atlantic . The Dividing of a Continent: Africa’s Separatist Problem. Disponível em: https://www.theatlantic.com/international/archive/2012/09/the-dividing-of-a-continent-africas-separatist-problem/262171/. Acesso em: 20 de Junho de 2021.
The Met. The Trans-Saharan Gold Trade (7th–14th Century). Disponível em: https://www.metmuseum.org/toah/hd/gold/hd_gold.html. Acesso em: 20 de Junho de 2021.