Conselho de Segurança, Responsabilidade de Proteger e Atrocidades Massivas

CSNU e Manutenção da Paz

O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) é formado por representantes de 15 países – 5 membros permanentes (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia) e 10 eleitos para mandatos de 2 anos –, que se reúnem para tomar decisões quanto à manutenção da paz e da segurança internacional. 

Em 1945, ano de criação da ONU, a preocupação da comunidade internacional era centrada em impedir a ocorrência de novas guerras entre os Estados. No entanto, com o aumento da ocorrência de conflitos dentro dos Estados no final dos anos 80 e, principalmente, devido aos massacres em Ruanda e Srebrenica nos anos 90, o Conselho de Segurança foi instado a se posicionar com mais veemência sobre questões de direitos humanos e atrocidades massivas. A evolução de conceitos como “Responsabilidade de Proteger” (R2P) e a inclusão da agenda de “Proteção de Civis em Conflitos Armados” aumentou as expectativas em torno da capacidade e da responsabilidade do órgão de agir para impedir atrocidades massivas e crimes contra a humanidade. 

Atuação do CSNU

Uma vez diante de uma situação de conflito, o Conselho possui algumas ferramentas para investigar e agir, de modo a atingir uma solução. Em primeiro lugar, segundo o artigo 34 da Carta da ONU, o Conselho pode requerer missões de avaliação para reunir conhecimento quanto à possibilidade de uma determinada situação se tornar um perigo à manutenção da paz e da segurança internacional, além de convidar às reuniões representantes de países que não são membros do Conselho, atores não estatais, ONGs e até mesmo indivíduos.

Se o CSNU considera que precisa atuar em uma situação específica, os primeiros passos tendem a envolver pressão diplomática através de pronunciamentos publicados pelo Presidente do Conselho ou de resoluções, condenando determinados atos. Com o agravamento do conflito, o Conselho pode se valer de ferramentas mais drásticas, dispostas no Capítulo VII da Carta da ONU. Ainda sem recorrer ao uso da força, o Conselho pode aplicar sanções econômicas a indivíduos e entidades que estariam envolvidos em violações de direitos humanos, com monitoramento feito a partir de comitês especializados. Além disso, após a entrada em vigor do Estatuto de Roma instituindo o Tribunal Penal Internacional (TPI) em 2002, o Conselho ganhou a prerrogativa de remeter casos de violações de direitos humanos ao Tribunal. Em março de 2005, o Conselho remeteu ao TPI a situação em Darfur, no Sudão, e, em 2011, a situação na Líbia.

Em última instância, também sob o Capítulo VII, o Conselho pode recorrer ao uso da força, o que pode ser feito em diferentes graus, a depender da fase e da gravidade do conflito. Operações de paz, como missões de peacekeeping, podem ser enviadas com consentimento das partes em conflito e mínima utilização da força, que estaria restrita a casos de legítima defesa. Tradicionalmente, estas missões tinham como objetivo principal supervisionar acordos de cessar-fogo, mas se tornaram multidimensionais com a inclusão de elementos civis e atividades relacionadas, por exemplo: a investigações de violações de direitos humanos, exercício de funções de polícia, assistência no restabelecimento das funções estatais e monitoramento de eleições. Em última instância, o Conselho pode autorizar medidas militares para impedir violações massivas de direitos humanos, mesmo sem consentimento das partes envolvidas no conflito.

Consenso e ação no CSNU

O desenvolvimento do conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P) tem íntima relação com a prática do CSNU. O Relatório da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS) menciona os casos da Somália, Ruanda, Bósnia e Kosovo como exemplos de situações em que o Conselho de Segurança falhou em proteger populações vulneráveis. Além disso, o documento enfatizou o papel central do Conselho de Segurança para decidir sobre intervenções militares à luz da R2P. 

Um dos principais desafios do CSNU é a construção de consenso entre seus membros, que pode ser obstaculizada pelo uso do veto pelos membros permanentes. Em 2014, Rússia e China vetaram a possibilidade de remeter a situação da Síria ao Tribunal Penal Internacional. Além disso, uma vez que é formado por apenas 15 membros, existem debates sobre a legitimidade de suas decisões e necessidade de reforma. O relatório da ICISS destaca a proposta de um “código de conduta” para os 5 membros permanentes em casos nos quais uma ação é necessária para impedir crises humanitárias, de modo que não usem o veto quando o interesse nacional não estiver envolvido. Diante disso, proteger civis em conflitos e impedir atrocidades massivas são desafios que dependem em grande parte do sucesso do CSNU em tomar decisões baseadas nos pilares da R2P de forma conjunta e no momento preciso, para que as catástrofes humanitárias anteriores não se repitam.

A atuação da ONU para impedir atrocidades massivas

Diante de situações de ameaça à paz e à segurança internacional, a ONU possui diferentes mecanismos para buscar a resolução dos conflitos e promover a cooperação, desde medidas diplomáticas até o uso da força. São basicamente cinco tipos de atuação, explicados nos tópicos a seguir: prevenção de conflitos, peacemaking, peacekeeping, peacebuilding e peace enforcement

Prevenção de conflitos

A prevenção de conflitos ou diplomacia preventiva consiste em evitar que disputas surjam entre as partes, evitar que disputas existentes evoluam e se tornem conflitos e, caso isso não seja possível, evitar que os conflitos se espalhem. Ela seria praticada pessoalmente pelo Secretário-Geral da ONU, através de sua equipe, de agências e programas especializados, pelo Conselho de Segurança, pela Assembleia Geral ou por organizações regionais em cooperação com a ONU. A construção de confiança é o objetivo da diplomacia preventiva, o que dependeria de medidas como fact-finding, para coleta de informações sobre tendências sociais e econômicas que podem causar conflitos, que por sua vez serviriam para fornecer avisos prévios sobre ameaças à paz.

Peacemaking

O peacemaking possui íntima ligação com o de prevenção de conflitos, com foco em reunir as partes em conflito para elaboração de acordo por meios pacíficos. A negociação e mediação têm papel central neste processo e poderiam ser executadas por indivíduos designados pelo Conselho de Segurança, pela Assembleia Geral ou pelo Secretário-Geral. No Relatório Brahimi e na Doutrina Capstone, este rol inclui também grupos não oficiais e não governamentais, além de personalidades eminentes trabalhando independentemente. Exemplos de peacemaking são o cessar-fogo Irã-Iraque em 1988, a libertação dos reféns ocidentais no Líbano em 1991, e a prevenção da guerra entre Irã e Afeganistão em 1998.

Peacekeeping

Missões de peacekeeping são iniciadas pelo CSNU para preservar a paz, ainda que frágil, em situações onde o embate tenha sido interrompido, e para auxiliar na implementação de acordos alcançados pelos peacemakers. Até o fim da Guerra Fria, as operações de peacekeeping visavam o monitoramento de acordos de cessar-fogo por observadores militares em cenários de guerra interestatal, para gerar confiança entre as partes. O peacekeeping é guiado pelos princípios de consentimento das partes, imparcialidade e não uso da força, exceto para legítima defesa e defesa do mandato da missão. As duas primeiras operações (Oriente Médio e Índia-Paquistão) iniciaram nos anos 1940 e continuam até hoje.

Diante da complexidade dos conflitos internos, crescentes no pós-Guerra Fria, e da preocupação com as causas dos conflitos e com estratégias de conclusão das missões, surgiu a ideia de peacekeeping multidimensional, empregando um conjunto de capacidades militares, civis e policiais para auxiliar na implementação de um acordo. Tais operações têm lugar no momento imediatamente posterior à estabilização de um conflito, quando a ordem pública ainda é muito frágil, a infraestrutura está destruída e a população deslocada e dividida, com a função de criar um ambiente seguro fortalecendo a capacidade estatal de prover segurança, facilitar o processo político promovendo o diálogo e garantir a atuação de outras agências da ONU e de atores internacionais, por exemplo, na entrega de ajuda humanitária. Esse tipo de atuação é fundamental no início das atividades de peacebuilding. Além disso, as possibilidades de uso da força se tornaram mais amplas. Em situações onde há grupos armados que podem ameaçar o processo de paz, as missões podem receber mandatos robustos, com autorização para utilizar todos os meios necessários para deter tentativas de romper o processo político, para proteger civis sob iminente ameaça de ataque físico e auxiliar autoridades nacionais na manutenção da lei e da ordem. 

Peacebuilding

O Peacebuilding é pensado para uma fase pós-conflito e consiste em atividades de longo prazo para evitar que o conflito ressurja, várias das quais estão no âmbito dos vários programas, fundos, escritórios e agências do sistema ONU, com foco na criação de estruturas para institucionalização da paz, e fortalecimento da capacidade estatal. As atividades podem ocorrer após negociação de um acordo com disposições de longo prazo para lidar com as causas profundas do conflito (políticas, econômicas e sociais), ou em relação a um conflito potencial ou passado, sem que tenha havido operação de peacekeeping anterior.

As atividades de peacebuilding podem ser resumidas em quatro áreas: restaurar a habilidade estatal de fornecer segurança e manter a ordem pública, fortalecer o Estado de Direito e o respeito aos direitos humanos, apoiar a emergência de instituições políticas legítimas e processos participativos, promover recuperação e desenvolvimento social e econômico, incluindo retorno seguro ou reassentamento de pessoas internamente deslocadas e refugiados. Até meados de 1999, as Nações Unidas tinham conduzido apenas um pequeno número de operações de campo com elementos de condução ou supervisão de administração civil, mas em junho de 1999 o Secretariado se encontrou na posição de desenvolver uma administração civil transicional para o Kosovo, e três meses depois para o Timor Leste.

Peace enforcement

Por fim, o peace enforcement compreende medidas coercitivas dispostas no Capítulo VII da Carta da ONU contra ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão, levadas a cabo por grupos de Estados membros autorizados e organizações e agências regionais pelo CSNU, uma vez que a ONU não possui forças armadas próprias. Diferentemente da operação de peacekeeping robusta, o uso da força não requer consentimento das partes e existência de processo político, podendo envolver a força militar em nível estratégico ou internacional.

A imposição de sanções também faz parte desta categoria, ainda que não haja uso de força militar e não possua finalidade punitiva, nem retributiva. Como resultado da preocupação quanto ao impacto humanitário de sanções amplas, o CSNU interrompeu seu uso após os casos do Iraque, da Iugoslávia e do Haiti, passando a direcionar sanções aos beligerantes e policy makers mais diretamente responsáveis pelos atos repreensíveis.

Conclusão

         As fronteiras entre prevenção de conflitos, peacemaking, peacekeeping, peacebuilding e peace enforcement se tornaram cada vez menos claras. As operações de paz da ONU raramente se limitam a um só tipo. O peacekeeping é iniciado para apoiar implementação de acordos, mas também se envolve em esforços de peacemaking e peacebuilding, além de poder utilizar a força a partir de mandatos robustos. Além disso, estas formas de atuação da ONU raramente ocorrem de maneira linear. A prevenção de conflitos, por exemplo, é pensada para evitar que um conflito ocorra e para que ele se repita, sendo, portanto, uma preocupação para antes, durante e depois do conflito. Os diferentes tipos de operações de paz precisam, portanto, ser pensadas de forma integrada, dentro da ideia de multidimensionalidade, para auxiliar no processo de restauração, manutenção e consolidação da paz.

Referências

BOUTROS-GHALI, B. An agenda for peace. New York: United Nations, 1992.

______. Supplement to an agenda for peace. New York: United Nations, 1995.

BRAHIMI, L. Report of the Panel on United Nations Peace Operations. New York: United Nations, 2000.

INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. The Responsibility to Protect: Report of the International Commission on Intervention and State Sovereignty. Ottawa: International Development Research Centre, 2001. 

KOLB, A. S. The UN Security Council Members’ Responsibility to Protect: A Legal Analysis. 1st ed. ed. [S.l.]: Springer, 2018.

2005.______. United Nations peacekeeping operations: principles and guidelines. New York: [s.n.], 2008.

Quênia: eleições e conflitos multiétnicos

Partes envolvidas

O conflito se deu entre as principais elites locais, tendo como representantes o presidente da época, eleito em 2002, Mwai Kibaki, e Raila Odinga, como opositor do Partido Democrático Laranja (ODM). O início dos conflitos se deu em 27 de dezembro de 2007, após o resultado da eleição presidencial ter afirmado que Kibaki havia sido reeleito. Essa vitória trouxe uma suspeita de fraude eleitoral, que veio a ser confirmada posteriormente com a apuração da União Europeia, além de protestos convocados pela ODM. Enquanto o presidente reeleito, Kibaki, tentava mediar a situação, pedindo moderação aos manifestantes e propondo um governo de coalizão com a oposição, Odinga incentivava os protestos e pedia uma declaração de reconhecimento da derrota. Além da fraude eleitoral, o problema fundamental foi a violência, tanto praticada pelos Estados, quanto pelos próprios cidadãos, que cometeram crimes até hoje não julgados, com um fundo intrincado nos conflitos étnicos advindos da colonização inglesa.

Contexto político

Fonte: Index Mundi

O Quênia, antes do conflito de 2007, era considerado a maior potência do oeste da África, além de ter uma imagem tradicionalmente pacífica. Apesar de todo esse potencial, o país enfrenta conflitos periódicos, principalmente em época de eleições, o que contradiz a ideia de que o embate de 2007 foi algo isolado. Em 1992, por exemplo, 1500 pessoas morreram também em conflitos políticos, apesar de não em condição idêntica à estudada.

Esses conflitos políticos são decorrentes da herança britânica que, com sua colonização, sublinhou divisões no país e fez com que cada grupo votasse no partido que representa sua etnia hoje, buscando mais representação política e justificando a tensão recorrente no período eleitoral. O país já tinha tensões políticas há décadas, que foram apenas expostas pelo conflito em 2007, que matou, em alguns dias, 1500 pessoas e deslocou de suas casas 300.000, com uma população de 38,71 milhões naquele ano (Fonte: Banco Mundial).

Violações

A colonização britânica aumentou as divisões e conflitos étnicos no país. Dos mais de 40 grupos étnicos, o kikuyu é o principal, com cerca de 22% da população do Quênia. Em seguida há o luhya, com 14%, o luo tendo cerca de 13%, o grupo kalenjin com 12% e, por fim, o kamba com um total de 11% da população. Por trás das manifestações e conflitos pós-eleição de 2007, pode-se observar duelos entre tribos rivais, as quais tinham por objetivo ampliar seu poder, território e riquezas, através do apoio dado ao candidato eleito ou à oposição. A maior parte dos luo votou em Odinga, por ser próprio do grupo. Enquanto a maioria dos Kikuyus optou por Kibaki. De acordo com a então subsecretária de Estado estadunidense para Assuntos Africanos, Jendayi Frazer, estava ocorrendo uma limpeza étnica – a qual é comumente tida como remoção forçada de um grupo étnico de determinado território. Já de acordo com o Tribunal Penal Internacional, os crimes cometidos no pós-eleição chegaram ao nível de crime contra a humanidade – que é considerado como violência sistemática ou generalizada contra civis. 

Entre os meses de dezembro de 2007 e fevereiro de 2008, cerca de 1.133  quenianos foram mortos, 900 sofreram estupros e violência sexual, 600.000 pessoas tiveram de sair de suas casas, com deslocamentos internos ou para países vizinhos, como Uganda, enquanto 110.000 propriedades privadas foram destruídas como consequência dos embates.

Atores externos envolvidos

A União Africana (UA), com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU),  países vizinhos, doadores e sociedade civil foram essenciais para a ação internacional ser tomada rapidamente. O processo de mediação de 41 dias, liderado pela União Africana, é considerado o primeiro caso de sucesso da Responsabilidade de Proteger na prática. Tanto o presidente eleito, Kibaki, quanto o candidato da oposição, Odinga, foram convocados a solucionar a crise através do diálogo, sem condições prévias. Tendo o fato das instituições do país serem fracas, reformas foram pensadas como uma maneira de evitar novos conflitos. Além disso, o Tribunal Penal Internacional denunciou três indivíduos, tomando por base a alegação de que crimes tenham sido cometidos durante a crise. Essa lista de indivíduos inclui o atual presidente queniano, Uhuru Kenyatta, o qual teve as acusações retiradas. Em relação aos outros dois, William Ruto e Joseph Arap Sang, tiveram suas incriminações também abandonadas.

Também são suspeitos de incentivo ao conflito étnico e crimes de guerra muitos empresários e políticos, que podem atuar de maneira a diminuir a chance de os processos serem levados à frente, havendo, ainda hoje, muitos culpados não tendo sido levados a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional de Haia. Também nada se faz pelo julgamento dos cidadãos que cometeram crimes, tornando a população ainda muito temerosa.

Referências Bibliográficas

Al Jazeera. ICC issues deadline on Kenyatta’s trial. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2014/12/3/icc-issues-deadline-on-kenyattas-trial.

Al Jazeera. Kenya: One year on. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2008/12/27/kenya-one-year-on. 

Al Jazeera. Kenya: What went wrong in 2007. Disponível em: https://www.aljazeera.com/features/2013/3/3/kenya-what-went-wrong-in-2007.

Al Jazeera. ‘Trial set’ for Kenyans over 2007 violence. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2012/6/11/trial-set-for-kenyans-over-2007-violence.

BBC. Entenda a crise no Quênia. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/01/080102_queniaentenda_ac

Brasil Escola. A crise no Quênia. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/a-crise-no-quenia.htm.

G1. Entenda o conflito no Quênia. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL280058-5602,00-ENTENDA+O+CONFLITO+NO+QUENIA.html.Global Centre for the Responsibility to Protect. Kenya. Disponível em: https://www.globalr2p.org/countries/kenya/.

Região de Sahel: violência, pobreza e ascensão de grupos terroristas

O Sahel

Expandindo-se da Costa Oeste do Continente Africano, Senegal e Mauritânia, à Costa Leste, Sudão e Eritréia, o Sahel é uma região transitória, semi-árida, entre o Saara e as savanas ao sul. O Sahel (do árabe سَاحِل‎, sāḥil, “costa’’) age como um cinturão que divide o continente em dois, a África majoritariamente islâmica, ao norte, e a cristã, ao sul. Englobando ao menos onze países, a região é lar para dezenas de grupos étnicos. Embora hoje não se tenha divisões tão claras, tradicionalmente esses grupos se dividem entre pastores nômades e fazendeiros sedentários. Atualmente o Sahel é uma região extremamente volátil, impactada por diversas crises, como: o aquecimento global, limpezas étnicas e a ameaça terrorista. Com Estados fracos e bordas porosas, a região é um ponto chave para organizações criminosas e propensa a crises migratórias.

Fonte: DW

Questões históricas e fronteiriças

Com a Conferência de Berlim (1884-1885), o continente africano foi repartido entre as potências europeias. As bordas dessas novas colônias foram formadas arbitrariamente, seguindo os interesses dos colonizadores, dividindo o território de povos ali habitantes¹. O Sahel foi dividido predominantemente entre Grã-Bretanha (Sudão, Sudão do Sul e Nigéria) e França (Mauritânia, Senegal, Burkina Faso, Mali, Níger e Chad), com o restante do território (Eritréia, Etiópia e Somália) ficando para os Italianos. Após a conquista europeia e o “fardo do homem branco”, os europeus impõem sua cultura e língua à população. Em 1959 o antropologista estadounidense George Murdock publica seu livro intitulado: Africa: its people and their culture history, nele o autor constrói um mapa aproximado da ocupação e territórios dos grupos étnicos no continente. Até os dias de hoje, depois de suas independências, as bordas dos Estados africanos não representam a herança cultural e histórica dos grupos étnicos que os habitam . Tendo em vista a fragilidade dos Estados, ou mesmo a total não presença em determinadas áreas, abre-se espaço para organizações criminosas.

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¹ https://www.theatlantic.com/international/archive/2012/09/the-dividing-of-a-continent-africas-separatist-problem/262171/

Fonte:  Africa, its peoples and their cultural history, G.P.

Através de rotas transaarianas, a região tem servido como um entreposto comercial na borda do “mar de areia”. Há registros milenares quanto à transação de bens, como ouro, sal e escravos². Hoje, pela porosidade das fronteiras no deserto, essas mesmas rotas são usadas no trânsito de mercadorias ilícitas, como armamento e drogas³. Na borda do deserto, povos nomádicos e semi-nomádicos, como os Tuaregues, se expandem por uma imensa região do Mali à Líbia, passando pela Argélia e Níger. Historicamente eles exerceram papel fundamental nessas rotas, como comerciantes ou guia de caravanas. Após a independência do Mali, em 1960, pelo caráter federativo do novo Estado, tensões surgem entre os povos Mandê, ao sul, e os Tuaregues, ao norte, nenhum dos povos conseguia exercer controle sobre o território do outro. Os Tuaregues se rebelam por seu território no Mali, chamado de Azauade, logo após a criação do Estado. Outras rebeliões e insurgências seguem, em especial quando se aliam à Líbia de Gaddafi e ao Ansar Dine, grupo islamista supostamente ligado ao AQIM (al-Qaeda no Magrebe Islâmico). Após a queda de Gaddafi em 2011 e com as instabilidades na região causadas por grupos terroristas, a organização política e militar MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azauade) foi criada. O MNLA é formado por Tuaregues, em sua maioria, e é considerado secular. Em 2011 o MNLA se rebelou contra o governo e junto a outros grupos, como o Ansar Dine, causando uma guerra civil sem conclusão até o dia atual. Com dois golpes de estado, em 2012 e novamente em 2020, grupos terroristas e uma guerra civil, o Mali é um Estado falho e com muitos desafios à sua frente.

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² https://www.metmuseum.org/toah/hd/gold/hd_gold.htm

³https://www.dw.com/en/sahel-trade-routes-arms-people-and-drugs/a-37125072

Crise humanitária 

Em abril de 2013 é criada a MINUSMA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização do Mali), dentre os seus objetivos estão: a estabilização da região, proteção dos civis e monitoramento dos direitos humanos. Em seu mais recente relatório, datado de 1º de junho de 2021, reporta-se: “[…] a MINUSMA documentou 422 violações dos direitos humanos (181) e abusos (241), 13 a mais que no período anterior. Estes incluíam execuções extrajudiciais sumárias ou arbitrárias (39), outras mortes (41), lesões (72), tortura ou maus-tratos (51), desaparecimentos forçados (6), sequestros (118), prisões ilegais e detenções, incluindo casos de detenção prolongada e violações do devido processo penal (95), bem como casos de deslocamento maciço e forçado de civis, ameaças de morte e intimidação, pilhagem e destruição de propriedade 4.” 

Os desafios enfrentados na Região do Sahel  englobam questões humanitárias e de segurança da população. A soma dos eventos climáticos com todos os demais fatores, como corrupção enraizada, tráfico ilícito, terrorismo e COVID-19 , desencadeou uma instabilidade e consequentemente um processo de desumanização da população da Região do Sahel.  De acordo com a UNHCR, há cerca de um total de 1.340,263 deslocados internos na região até fevereiro de 2020, buscando outras regiões com melhores condições de desenvolvimento e segurança.

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4https://minusma.unmissions.org/en/reports

Conflitos, atrocidades massivas e refugiados

As diferenças sociais, ideológicas e culturais culminaram em violência coletiva e desenvolveu práticas eliminatórias de determinados grupos da população (limpeza étnica), bem como intensificou a falta de acesso a serviços humanitários,  ataques a escolas e hospitais, sequestros, violência sexual contra mulheres,  mutilação, deslocamento de grupos e ataques a instituições do Estado. Os mais recentes acontecimentos ocorreram no Mali, em  Março de 2012, estabelecendo o golpe militar e em 2019, somente no Mali, 745 violações graves contra crianças foram registradas.

Com o decorrer dos anos, verificou-se a expansão dos grupos extremistas que vêm desenvolvendo impactos devastadores  em Burkina Faso, Mali e Níger, resultando em milhões de famílias sendo deslocadas em toda a região, fugindo para outras regiões que também são afetadas pelos mesmos fatores, violência e pobreza, totalizando cerca de 650.000 pessoas deslocadas só em 2019, segundo a ONU.  De acordo com o Alto Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR) em 2020, estima-se que em Burkina Faso cerca de 5% de sua população fugiu da violência em seu país e, ao mesmo tempo, cerca de 25.000 refugiados viviam em assentamentos em seu território. A maior parte vindos do Mali, fugindo do surto de violência cometidas por rebeldes ligados ao Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. Esses deslocamentos massivos no continente africano  já atingem países vizinhos ao Sahel, como  Chade, Costa do Marfim, Mauritânia, Gana, Benin e Togo.

Atuação internacional

O Tribunal Penal Internacional voltou suas atenções à região em 2013, sentenciando, finalmente, em 2017, o antigo líder do Ansar Dine Ahmad al-Faqi al-Mahdi pela destruição de um patrimônio mundial em Timbuktu, classificado como crime de guerra. O Conselho de Segurança da ONU também atuou impondo sanções a oito indivíduos no Mali por violação aos direitos humanos, incluindo o recrutamento de crianças-soldado e ataques a membros da ONU.

Com a baixa capacidade dos governos da região do Sahel, que surgiram de processos coloniais, e efeitos de mudanças climáticas, problemas relacionados ao acesso à saúde, garantia à educação e às demais questões relacionadas à subsistência estão delegadas a diversas Organizações Não Governamentais (ONGs) que realizam o trabalho do Estado. As ONGs mais atuantes, atualmente, na região do Sahel desenvolvem trabalhos com apoio de voluntários e doações.

ONGs como o ACNUR, o Médicos sem fronteiras (MSF) e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) desenvolvem ações com o propósito de  oferecer abrigo, acesso à água potável, acesso à assistência médica, apoio psicológico às vítimas de violência sexual ou de gênero, bem como  atividades de proteção aos refugiados.

Referências

ACNUR. Seis histórias para entender a crise no Sahel. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/07/06/seis-historias-para-entender-a-crise-no-sahel/. Acesso em: 28 de Junho de 2021.

ACNUR. Crise do Sahel explicada. Disponível em: https://www.unrefugees.org/news/sahel-crisis-explained/. Acesso em: 02 de Julho de 2021.

ACNUR. Crise no Sahel: resposta de emergência e proteção do ACNUR Disponível em: https://data2.unhcr.org/en/documents/details/76874. Acesso em: 02 de Julho de 2021.

BBC. Cinturão do Sahel, o esconderijo de jihadistas na África que preocupa cada vez mais a Europa. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42996119. Acesso em: 28 de Junho de 2021.

Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Conflitos no Mali. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/conflito-no-mali. Acesso em: 02 de Julho de 2021.

DeutscheWelle (2017) Angela Merkel: ‘Urgent’ need for Sahel anti-terror force. Disponível em: https://www.dw.com/en/angela-merkel-urgent-need-for-sahel-anti-terror-force/a-41773078?maca=en-rss-en-all-1573-rdf. Acesso em: 20 de Junho de 2021.

Deutsche Welle. Sahel trade routes: Arms, people and drugs. Disponível emhttps://www.dw.com/en/sahel-trade-routes-arms-people-and-drugs/a-37125072

Acesso em: 20 de Junho de 2021.

G1. Burkina Faso: ataques mais sangrentos desde 2015 deixam ao menos 138 mortos. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/06/05/burkina-faso-ataques-mais-sangrentos-desde-2015-deixam-aos-menos-138-mortos.ghtml. Acesso em: 02 de Julho de 2021.

Médicos Sem Fronteiras. MSF expande suas atividades na região do Sahel para combater crise de desnutrição. Disponível em: https://www.msf.org.br/noticias/msf-expande-suas-atividades-na-regiao-do-sahel-para-combater-crise-de-desnutricao. Acesso em: 02 de Julho de 2021.

MINUSMA. Reports. Disponível em: https://minusma.unmissions.org/en/reports. Acesso em: 20 de Junho de 2021.

ONU NEWS. ONU: 4,8 milhões de pessoas no Sahel Central estão sob ameaça de fome. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/02/1702702. Acesso em: 28 de Junho de 2021.

The Atlantic . The Dividing of a Continent: Africa’s Separatist Problem. Disponível em: https://www.theatlantic.com/international/archive/2012/09/the-dividing-of-a-continent-africas-separatist-problem/262171/. Acesso em: 20 de Junho de 2021.

The Met. The Trans-Saharan Gold Trade (7th–14th Century). Disponível em: https://www.metmuseum.org/toah/hd/gold/hd_gold.html. Acesso em: 20 de Junho de 2021.

Bem vindo ao OCI

    Este observatório visa monitorar com base no compromisso de proteger, populações em crise. Através do levantamento de dados, quais são as vítimas ou possíveis vítimas de atrocidades massiva.

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