A vulnerabilidade das mulheres em contexto de conflito internacional

31 de agosto de 2022

Autoras: Alice Lucena Wanderley Gallindo e Poliana Jaine Nunes Viana


Mesmo que em um contexto de conflito armado as comunidades dos países envolvidos sofram de uma maneira generalizada, os grupos que são marginalizados em circunstâncias normais acabam tendo sua vulnerabilidade ainda mais agravada, em particular as mulheres. A violência sexual contra mulheres e crianças marcou a história, sendo praticada como uma estratégia deliberada de guerra em conflitos ao redor do mundo e ao longo dos séculos, entendendo-se até o presente, com ocorrência até mesmo em locais de refúgio e nos momentos de repatriação. Embora atualmente as violências dessa natureza sejam reconhecidas como crimes de genocídio e crimes contra a humanidade, elas continuam acontecendo com uma grande frequência nos contextos de conflito e guerra. 

Evidentemente, é possível identificar na história de vários conflitos, e também na mitologia e nos escritos religiosos, relatos e referências às violências cometidas contra as mulheres. Uma prática antiga e muito comum dentro do contexto de guerra é o da pilhagem ou butim, que consiste na espoliação e apropriação dos bens dos seus inimigos pelos soldados vencedores, o que incluía frequentemente a violação de mulheres. Ao longo do tempo, o estupro foi sendo naturalizado nos conflitos armados e se tornou uma ferramenta de dominação, exploração e desestabilização, onde essas mulheres das comunidades derrotadas eram muitas vezes vistas como prêmio para os militares. Além disso, o estupro também servia como uma estratégia de limpeza étnica na qual muitas das mulheres, quando sobreviviam, engravidavam do exército inimigo de origem distinta e assim corriam o risco de serem rejeitadas por sua família e sua comunidade. Esse tipo de prática está presente desde da Guerra de Tróia, onde as mulheres da cidade foram divididas entre os soldados gregos depois da invasão, até aos escritos bíblicos, onde o estupro e violação da integridade das mulheres são citadas diversas vezes como castigo divino. 

Dentre os casos mais marcantes da história é possível destacar os episódios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, em que os estupros voltaram a ser uma arma sistemática para humilhar e aterrorizar as populações invadidas. Quando as tropas dominavam o território inimigo, abusos sexuais eram cometidos, sobretudo pelo exército alemão e soviético, no qual os estupros coletivos eram tolerados e até encorajados em alguns casos. Os nazistas transformaram as mulheres judias, polonesas e holandesas em escravas sexuais antes que fossem mortas. Já no caso soviético, durante o processo de ocupação na Alemanha em 1945, o Exército Vermelho também cometeu estupros em massa de meninas e mulheres alemãs. Mais de 240 mil morreram no período, que perdurou até 1948, quando a Alemanha recuperou sua estrutura política. Centenas de milhares de mulheres foram violentadas e muitas mortas após o estupro, e quando não morriam ou contraiam algum tipo de doença venérea, outras consequências e efeitos colaterais eram provocados, como os de natureza psicológica que acarretavam, muitas vezes, ao suicídio. Um número expressivo de alemães cometeram tal ato para escaparem da violência, bem como evitarem um estado pós-traumático.

Também durante a Segunda Guerra Mundial, o caso mais emblemático, cometido por tropas do Império Japonês, foi o caso das “mulheres de conforto”; em que mais de 200 mil meninas e mulheres de países asiáticos dominados pelo Império do Japão foram escravizadas sexualmente e forçadas a se prostituírem em bordéis militares. A função dessas “mulheres de conforto” eram de evitar que militares japoneses cometessem o crime de estupro. Para isso, foi elaborado um sistema de prostituição organizado que servisse às Forças Armadas Japonesas. Mas esse não foi o único caso da violência sexual cometido pelo Império japonês. Além disso, temos o exemplo do massacre de Nanquim, no qual, nessa cidade, durante 1937 a 1938, centenas de milhares de civis e soldados chineses foram submetidos a torturas, estupros e mortes violentas pelo Exército Imperial Japonês. 

Mais recentemente, na Guerra do Kosovo, em 1990, os militares sérvios cometeram uma série de violências contra a população, principalmente as mulheres. Estima-se que em torno de 20 mil pessoas foram vitimadas e para demonstrar poder e causar mais impacto, essa violência era praticada na frente de familiares e da comunidade. No caso do kosovo ocorreu a categorização do estupro enquanto arma de guerra demarcado, o foi crucial no combate à violência de guerra contra o gênero feminino. Já durante o Genocídio de Ruanda de 1994,  um massacre se alastrou por 100 dias no país da África Central. As Nações Unidas estimam que entre 250 mil e 500 mil mulheres foram violentadas por milícias e/ou grupos hutus armados. 

Dos casos que se alastram até o presente é possível citar o exemplo do grupo extremista Boko Haram, que tenta impor a lei islâmica Sharia na região do norte da Nigéria. Para isso, o grupo utiliza como estratégia a invasão de escolas de meninas, as capturando e as estuprando. Essas jovens, que têm normalmente entre 8 a 35 anos, são violentadas até aceitarem se converterem ao islamismo e se casarem com seus torturadores. Esses crimes não são apenas cometidos por membros do Boko Haram, há relatos também de estupros praticados pelo próprio exército nigeriano, que deveriam estar punindo e evitando esse tipo de prática. A ONU já denunciou o estupro como tática de guerra do Boko Haram, afirmando que esses atos estão “totalmente vinculados a objetivos estratégicos, à ideologia e ao financiamento de grupos extremistas”. 

Outro exemplo possível citar que ocorre no presente é o da Guerra do Tigré, região da Etiópia, iniciada em 2020. O conflito lá existente foi denunciado em um documento da Anistia internacional pelos estupros e violências cometidos contra centenas de mulheres e crianças pelas tropas da Etiópia e da Eritreia. A guerra ainda em andamento é repleta de denúncias de escravidão sexual e casamentos forçados. As vítimas são raptadas em suas próprias casas ou nas ruas, sendo violentadas na frente de familiares e da comunidade, com a participação de dois ou mais homens. Além destes, no conflito que ocorreu na região do Sudão do Sul também houve casos de violação dos direitos e da integridade da vida das mulheres. As Nações Unidas acusam as autoridades do país por permitirem que os combatentes atuem em estupros massivos de mulheres como pagamento, e segundo a ONU, muitas das jovens são forçadas a casar com os agressores, principalmente as que engravidam para evitar estigmatização e retaliação da comunidade.  

Atuação Internacional

Para combater os problemas relativos a violência contra as mulheres em contextos vulneráveis, a ACNUR, Agência da ONU, trabalha, sistematicamente, para identificar e reduzir perigos, incluindo riscos de exploração sexual, abuso e assédio, em todas as suas operações. Diante de tudo isso, houveram algumas tentativas para julgar e punir crimes relativos à violência contra as mulheres em contexto de conflito ou de guerra. De acordo com o Direito Internacional Humanitário, alguns grupos de pessoas têm direito a proteção especial. Por exemplo, mulheres e crianças são objeto de respeito especial e devem ser protegidas em particular contra todas as formas de atentado ao pudor (artigos 76 e 77 da Convenção de Genebra de 1977). É possível citar também os tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e para Ruanda. Além desses, há também o Estatuto de Roma, instrumento base do Tribunal Penal Internacional que representou importante passo para a punibilidade de condutas desta natureza. 

Nesse sentido, de acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a vulnerabilidade é resultado das condições precárias de existência de indivíduos, famílias ou comunidades ameaçadas por uma mudança brutal em seu ambiente, que podem decorrer de fatores sociais, econômicos, políticos e culturais. Tais mudanças são bastante característicos em conflitos armados e situações de distúrbios internos e, particularmente, nas sociedades patriarcais, em que as mulheres, além de tudo isso, são vítimas também do sexismo e enfrentam a discriminação. A vulnerabilidade das mulheres muitas vezes deriva do fato de que os conflitos armados de hoje mudaram de tal forma que os civis estão cada vez mais envolvidos nos combates e que as mulheres se veem obrigadas a carregar muitas vezes o fardo de garantir a sobrevivência diária de suas famílias. Assim, as mulheres são especialmente expostas à pobreza, à exclusão e aos sofrimentos causados ​​pelos conflitos armados quando já estão sujeitas à discriminação até mesmo em tempos de paz.

Portanto, é visto que ao longo da história as mulheres sempre foram alvo de atrocidades, suscetíveis a diversos tipos de crimes que, mesmo estando em dissonância aos direitos humanos, muitas vezes foram naturalizados e/ou encobertos. Entretanto, mesmo com um longo caminho ainda a percorrer – em prol de estabelecer segurança e equidade -, é visto que, diante de um conjunto de ações que envolvem desde sua própria luta até atuações internacionais de defesa das mulheres e dos direitos humanos, muitos avanços já foram conquistados e assegurados, de modo que tal grupo passa a ter cada vez mais destaque e autonomia, assegurando direitos fundamentais e visibilidade no espaço em que se encontram.

Referências

Massacre de nanquim: o brutal episódio do Japão Imperial

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-massacre-de-nanquim-japao-imperial.phtml

Mulheres como armas de guerra: como a violência sexual é usada para humilhar inimigos e conquistar territórios https://www.eql.com.br/noticias/2022/03/mulheres-armas-de-guerra-estupro/

Dia Internacional em Memória das “Mulheres de Conforto” marca período de escravização sexual de asiáticas

Violência contra a mulher em situação de conflito armado

https://www.funag.gov.br/ipri/btd/index.php/12-mestres-irbr/427-violencia-contra-a-mulher-em-situação-de-conflito-armado

Sudão do Sul permite que soldados estuprem mulheres como pagamento

Women, Armed Conflict and International Law

https://brill.com/view/book/9789004482005/B9789004482005_s004.xml*

Women Women in war a particularly vulnerable group?

https://www.icrc.org/en/doc/resources/documents/feature/2007/women-vulnerability-010307.htm