Guiné: Golpes de Estado e Abuso da Força

21 de fevereiro de 2022

Autores: Iero Candé e Leticia Souza

A República da Guiné, país da África Ocidental, passou por um processo político perigoso que colocou em risco  a população do país. Após a morte do presidente Lansana Conté em 2008, a junta militar do governo organizou um golpe de Estado, efetuado em dezembro. No ano seguinte,  o líder da junta, Capitão Dadis Camara, resolveu concorrer às eleições.

Em 28 de setembro de 2009, grupos de oposição organizaram uma manifestação em um estádio em Conacri, capital do país, para protestar sua candidatura, interpretada como uma intenção de quebra da promessa de ceder o poder ao governo civil nas eleições de janeiro de 2010. Como o governo havia banido qualquer forma de demonstração pública até o dia 2 de outubro, as forças de segurança abriram fogo contra a multidão, resultando na morte de 150 pessoas e em 1.200 feridos, além de uma serie de estupros e violência sexual generalizados ao longo dos períodos de protestos. 

Após o incidente no estádio, a ONU estabeleceu uma Comissão de Inquérito sobre a situação, que concluiu que os crimes perpetrados faziam parte de um ataque sistemático, caracterizado como crimes contra a humanidade. O relatório da comissão indicou que membros do Conselho Nacional para Democracia e Desenvolvimento (CNDD), de Camara, tinham conhecimento prévio da manifestação e incitaram as forças armadas a cometer violência contra civis. O resultado foi a condenação de 13 pessoas. 

A comunidade internacional tomou uma série de medidas para responder à crise e condenar as ações do governo. A União Africana (UA), União Europeia (UE) e Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e atores internacionais pressionaram o CNDD e seus apoiadores a se absterem de mais violência, restaurar a ordem constitucional e devolver o governo à democracia. As medidas foram variadas e abrangeram a diplomacia preventiva, sanções na forma de proibição de viagem e congelamento de bens em membros do CNDD, embargos de armas à Guiné para reduzir a capacidade militar, reformas do setor de justiça e segurança, e medidas destinadas a combater a impunidade e reforçar a responsabilização. O Conselho de Segurança da ONU, o Secretário-Geral da ONU e Estados como a França e os EUA emitiram declarações de condenação e retiraram suas forças econômicas e militares de assistência à Guiné. O governo guineense chegou a enviar dois pedidos ao Peacebuilding Commission (PBC) entre 2010 e 2011.

Com mediação facilitada pela CEDEAO, foi possível a formação de um Governo de Unidade Nacional e a realização de eleições no fim de 2010, em que o presidente Alpha Condé foi eleito. O governo planejou eleições legislativas em 2011, mas estas foram adiadas várias vezes até setembro de 2013, aniversário do massacre no estádio. Manifestantes e forças militares se envolveram novamente em confrontos violentos durante protestos naquele ano, resultando em mais de 50 mortes entre março e setembro. As forças de segurança foram amplamente acusadas de usar força excessiva, aprofundando até a hostilidade entre as etnias Malinke e Peuhl. 

Até hoje as forças de segurança sofrem denúncias por usar violência excessiva e letal contra manifestantes, como após as eleições locais em 2018 e em 2019, quando 12 pessoas foram mortas pelas forças de segurança durante os protestos contra o governo. Manifestações e tensões entre etnias resultaram na morte de civis. Em 2019, 10 manifestantes foram feridos e 2 foram mortos a tiros na cidade de Siguiri. Diante dessa situação, o governo proibiu as manifestações dos opositores, e começou a patrulhar bairros, onde foram acusados de perseguir os civis e vandalizar as suas casas.  

Em 2020, o presidente Alpha Condé foi reeleito para um terceiro mandato, resultado de um controverso referendo constitucional em março do mesmo ano que determinou a possibilidade dele concorrer pela terceira vez. Após a eleição, mais protestos eclodiram para contestar os resultados, com a acusação de que Condé teria manipulado os resultados. De acordo com as autoridades judiciais, durante os dias que se seguiram às eleições presidenciais, 20 cadáveres foram entregues ao departamento de medicina legal do Hospital Ignace Deen em Conacri. De acordo com a União das Forças Democráticas da Guiné (UFDG, um partido da oposição), houveram 46 vítimas entre 19 de outubro e 3 de novembro. As autoridades realizaram pelo menos 400 prisões arbitrárias, visando opositores e membros da sociedade civil. Além disso, a Guiné enfrenta graves problemas de liberdade de expressão, com vários jornalistas presos e impedidos de fazerem cobertura dos protestos, e também algumas emissoras foram fechadas pelo governo.

Em 2021, o tenente-coronel Mamady Doumbouya anunciou que havia deposto o presidente e dissolvido o governo. O próprio Doumbouya anunciou a suspensão da Constituição, a dissolução das instituições e o fechamento das fronteiras terrestres e aéreas. O Ministério da Defesa chegou a afirmar que a tentativa de golpe não havia tido êxito, mas ao longo da manhã, a capital foi palco de troca de tiros com presença de soldados nas ruas. Doumbouya afirmou que a junta militar estava assumindo o poder para enfrentar a corrupção, a má gestão do governo e os abusos dos direitos humanos. No início de 2022, a junta criou um Conselho Nacional de Transição (CNT), com 80 membros, para atuar como parlamento durante a transição do país para as eleições.

O principal candidato da oposição, Cellou Dalein Diallo (UFDG), saudou o golpe. Outro partido opositor, Frente Nacional pela Democracia na Guiné (FNDG), afirmou endossar a suspensão da Constituição. Em muitas ruas de Conacri os militares foram recebidos em meio a expressões de alegria por parte da população. Líderes internacionais e organizações regionais, incluindo a UA, criticaram o acontecido. A derrubada foi condenada pelos países vizinhos e parceiros internacionais da Guiné, levando à sua suspensão da CEDEAO, que enviou uma missão de alto nível à Guiné.

Esse conjunto de elementos, acompanhado da desigualdade social, um sistema judiciário muito precário e a fraca infraestrutura geram muita impunidade. Desde a sua independência da França, em 1958, o país conheceu uma sucessão de ditaduras e golpes de Estado. As tentativas de Condé de permanecer no poder a todo custo e o estabelecimento de um regime que atormenta os oponentes e as vozes críticas, de acordo com ONGs de direitos humanos, contribuíram para mergulhar o país de volta na instabilidade.  

Referências:

Atrocity Alert No. 269: Ethiopia, Guinea and Education Under Attack.  Global Centre for the Responsibility to Protect. Disponível em: <https://www.globalr2p.org/publications/atrocity-alert-no-269/>.  Acesso em 15 jan. 2022.

Grupo de militares protagoniza golpe de Estado na Guiné e detém o presidente. El País. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-05/grupo-de-militares-protagoniza-golpe-de-estado-na-guine.html>. Acesso em 01 fev. 2022.

Guinea: Defense and security forces killed people in pro-opposition neighbourhoods after presidential election. Amnesty International. Disponível em: <https://www.amnesty.org/en/latest/news/2020/12/guinea-defense-and-security-forces-killed-people-in-proopposition-neighbourhoods/ >.   Acesso em 20 jan. 2022.

Guinea. Global Centre for the Responsibility to Protect. Disponível em: <https://www.globalr2p.org/countries/guinea/> Acesso em 15 jan. 2022.

Guinea. Human Rights Watch. Disponível em: <https://www.hrw.org/world-report/2019/country-chapters/guinea# >.  Acesso em 20 jan. 2022.

Guinea junta establishes council to lead transition to elections. Reuters. Disponível em: <https://www.reuters.com/world/africa/guinea-junta-establishes-council-lead-transition-elections-2022-01-22>. Acesso em 15 fev. 2022.

STEFA, Cristina G. Lessons in Atrocity Prevention: A Closer Look at Guinea. Journal of International Peacekeeping, vol. 24, 2020. Disponível em: <https://eprints.whiterose.ac.uk/182634/1/%5B18754112%20-%20Journal%20of%20International%20Peacekeeping%5D%20Lessons%20in%20Atrocity%20Prevention_%20A%20Closer%20Look%20at%20Guinea.pdf>. Acesso em 10 fev. 2022.