18 de outubro de 2021
O estupro praticado em situações de conflito, afetando principalmente mulheres e crianças, se tornou mais do que um crime contra o indivíduo: em 2016, o Tribunal Penal Internacional (TPI) condenou Jean-Pierre Bemba, antigo vice-líder da República Democrática do Congo, pelo uso do estupro como arma de guerra – entre outros atos. A importância de tal momento se dá pelo reconhecimento legal de uma instituição formal sobre a gravidade de uma violência vista com normalidade e até como estratégia tanto para coagir, quanto para recompensar os combatentes.
Em diversas regiões do planeta, o estupro como arma de guerra foi e continua sendo praticado. Ele é percebido como um ato de violência contra o outro, considerado inferior quer por sua etnia, nacionalidade, gênero, posição política ou religião. Tal prática pode ser motivada por diversas causas: purificação étnica, espólio de guerra e genocídio são algumas das mais frequentes. As vítimas, quando não morrem em decorrência do ato, costumam sofrer danos irreparáveis à saúde física e mental, além de gravidez forçada e abortos. O uso do estupro como arma de guerra é diretamente relacionado à ideia difundida em várias sociedades de que tal ato provoca desonra não contra o autor, mas contra a vítima, sendo uma forma de perpetuar a humilhação naquele indivíduo em sua família e sociedade através de gerações.
Através de denúncias feitas pela ONU, Anistia Internacional, Cruz Vermelha e outras organizações, a elaboração da tipificação penal do estupro como arma de guerra considera o estado de vulnerabilidade e agressão ao qual as vítimas são postas, a frequência e a complexidade do ato. O TPI entende que o estupro é uma invasão física, de natureza sexual, coercitiva e que não pode ser visto pela sociedade como uma mera consequência dos conflitos, naturalizando a violência. As organizações que se dedicam ao combate de tal prática reconhecem que o estupro não é praticado de forma aleatória e esporádica: ele está associado a outras ações estratégicas contra as vítimas, tais como a escravidão, o casamento forçado, o sequestro de crianças para formação de tropas, a restrição a recursos vitais – como água, comida e medicamentos -, entre outros.
Apesar da gravidade de tal crime, a responsabilização desses agressores não costuma ser fácil. Os esforços para o combate e punição contra o estupro praticado em situações de guerra se densificaram ao longo dos séculos XX e XXI graças, principalmente, aos esforços da sociedade civil e das organizações internacionais que lidam tanto com direitos das mulheres e crianças, quanto com o amparo a vítimas de conflitos armados em denúncias e acusações de atores individuais, de grupos e mesmo Estados por crime contra a humanidade.
3 casos onde o estupro foi praticado como arma de guerra
A prática do estupro em situações de conflito é vista com frequência como algo quase trivial, um “mal menor” em uma hierarquia da violência. Acompanhando a história das guerras já praticadas e ainda hoje existentes, percebemos que a estimativa de vítimas de estupros em tal circunstância é alarmante e que as sequelas de tal crime se estendem por toda a sociedade durante gerações. Apesar disso, o silenciamento das suas vítimas e a indiferença com a qual a sociedade costuma tratar a questão é um grande problema ainda a ser resolvido. Abaixo, apresentamos três casos contemporâneos de conflitos onde o estupro foi praticado como arma de guerra.
- Kosovo
Os conflitos envolvendo a região da antiga Iugoslávia se desenvolveram ao longo da década de 1990 afetando milhares de pessoas de diferentes etnias. Após o bombardeamento da Sérvia pela Otan, a guerra de Kosovo teve um novo desdobramento: motivados por questões étnicas, políticas e revanchismo, militares sérvios juraram vingança aos moradores da província separatista, provocando a morte de aproximadamente 13 mil pessoas de várias etnias e o desaparecimento de 1600. Dentre as vítimas desse ataque estão cerca de 20 mil que foram estupradas em diversas circunstâncias e cujos relatos de tal atrocidade ainda são difíceis de serem trazidos ao meio público, apesar dos mais de vinte anos do fim do conflito, e um dos motivos para tal é a falta de punição contra esse crime e a constante descrença nos tribunais quanto aos relatos e provas levantadas, que são frequentemente desconsideradas. Em 2017, a Anistia Internacional divulgou relatório que denunciava a ONU em suas ações na região após a guerra por a mesma se omitir do dever de investigar os casos de violência sexual e negligenciar suas vítimas – comportamento esse não apenas visto nessa ocasião: o Tribunal Penal Internacional também ficou conhecido pela pouca importância dada a tal violência, ao condenar apenas quatro oficiais de alta patente por crimes diversos, dentre eles a prática de estupros de forma estratégica, mas nenhum estuprador em específico. Diante de tal negligência outros tribunais e organizações são ainda hoje ativados em busca de justiça, como a União Européia através da Missão de Política e Justiça, a Câmara Especial para Crimes de Guerra sediada em Belgrado (Sérvia) e a ONG Centro de Reabilitação Kosovar para Vítimas de Tortura (KRCT).
2. Nigéria
Não apenas os grupos radicais Boko Haram e Estado Islâmico, mas também oficiais e tropas militares tanto do estado quanto de regiões vizinhas são deninciados a nivel internacional pela prática de estupro enquanto arma de guerra. Em 2014, mais de 200 estudantes da região de Chibok, norte da Nigéria, foram sequestradas pelo Boko Haram; tal ação foi motivada para a prática de estupros, casamentos forçados e escravidão sexual de mulheres e meninas – algo que não é oposto ao ideologia do grupo e que ainda hoje ocorre. Tais ações reportadas ainda hoje fazem parte da dinâmica de terror imposta àqueles submetidos ao seu domínio e tanto o Boko Haram quanto o Estado Islâmico constam na listas da ONU que reportam a existência de facções praticantes de violência sexual de forma estratégica em prol de maior atenção internacional às suas ações. O perfil das vítimas é o de pessoas de sexo feminino com idade entre 8 e 35 anos que, tanto como escravas quanto como esposas, são prometidas a seus soldados como recompensa pela sua adesão ao movimento. Fora esses casos, também são reportados estupros como o registrado em 2017, onde uma garota de 14 anos, refém do Boko Haram por 3 anos, foi violentada por oficiais de segurança de um campo para vítimas de guerra instalado no país.
3. Etiópia
Em relatório divulgado este ano, a Anistia Internacional denuncia o estupro de centenas de mulheres e crianças por tropas da Etiópia e da Eritreia durante os conflitos decorridos no Tigré, havendo ainda denúncias de escravidão sexual, casamentos forçados e mutilações. Tal relatório foi feito a partir de relatos de 63 vítimas, sendo o modus operandi das tropas criminosas semelhante ao que se percebe em outros casos: as vítimas são abordadas em casa ou nas ruas, raptadas e presas por semanas e constantemente violentadas na frente de familiares ou outras pessoas, com participação de dois ou mais homens. As sobreviventes, em seus relatos, denunciam a violência sofrida e suas sequelas, muitas delas irreversíveis, e o descaso por parte de vários grupos da sociedade quanto ao ocorrido e que mais de um grupo em conflito na região praticam os estupros.
Referências
https://veja.abril.com.br/mundo/a-intima-historia-do-estupro-e-da-guerra/